“Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; […] Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos, não há plateia".
{Machado de Assis, em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’}
Ontem fui à farmácia, comprar um xarope para a minha pequena. Fui como estava em casa, com roupa de domingar: moletom velho, camiseta descombinante por baixo, calça surrada e tênis, este colocado de última hora, só porque não soaria bem ir de chinelo e meia.
Não soou bem de qualquer forma.
Fui tratado com menosprezo mesmo. Como um incômodo atravessando o fim de semana da moça no atendimento. Não me importei, de verdade. Eu teria a mesma expressão de descaso, se fosse obrigado a trabalhar no domingo - mentira.
Mas eu fiquei pensando, mesmo assim, em como teria sido tratado diferente se estivesse em mangas de camisa, cabelo alinhado, jeans e sapato casual. Talvez dirigindo um SUV, em vez de um carro que quase me deixa a andar sozinho nas subidas.
Tudo isso me fez lembrar o que me disse uma professora da faculdade, quando eu ainda cursava jornalismo: “Olhando assim, não se dá nada por ele. Vejam só essa cara de quem não tem serventia alguma! Mas quando ele escreve… Ah, quanta diferença!”
Duvidem ou não, eu levei anos para entender que aquela fala não fora um elogio. Na época, eu era tão inseguro sobre a minha escrita, que só foquei nessa parte. De resto, eu me tinha em tão baixa conta, que a crítica à minha aparência passou por constatação apenas. Era o óbvio sendo dito, ora.
E eu me acostumei a isso, no fim. A ser menosprezado. A ser julgado pela aparência, pelo meu jeito meio acabrunhado de ser, de quem não chega chegando, de quem não se impõe, de quem não faz questão alguma de dar carteiraço.
E isso tem raízes antigas...
Quando minha mãe engravidou, precisou esconder a gravidez. Depois, o Doutor para quem ela trabalhava escondeu a minha adoção. Minha mãe adotiva, para completar, sempre me ensinou a não chamar a atenção, a desaparecer, a ir para os cantos e para as sombras.
E eu aprendi bem.
Como se não bastasse, também nunca me liguei muito para as aparências. Fui estoico, mesmo antes do estoicismo ser moda. Sempre fiz o que era preciso fazer. Sempre comprei o necessário apenas. Sempre deixei de lado o supérfluo, o enfeite, a vaidade.
Não sou um mulambo, claro. Mas nunca liguei para marcas, tendências e modas. Sempre fui o intelectual meio desajeitado, o nerd clumsy, o gauche na vida de que falava Drummond.
Então, por que a moça da farmácia me deixou… incomodado? desconcertado? intrigado?! Foi porque fiquei pensando no Efeito Halo, que conheci recentemente. A teoria não é nova, foi elaborada pelo psicólogo Edward L. Thorndike, em 1920.
Segundo ele, nosso cérebro tem um potencial terrível para analisar, julgar e definir uma pessoa a partir de uma única característica. Explico melhor: se uma pessoa é bonita, por exemplo, tendemos a acreditar que ela também é competente, talentosa e bem-sucedida, mesmo sem provas disso. Se ela se veste bem, acreditamos que é organizada, rica e sofisticada. Se ela dirige um carro importado, acreditamos que é próspera, influente e vaidosa. O contrário também vale. Se a pessoa é gorda, também é preguiçosa, relaxada e incompetente. Se está de moletom velho, é pobre, estabanada e burra.
O pior é que isso não se restringe a meras impressões.
Segundo um estudo conduzido por Timothy A. Judge, Charlice Hurst, e Lauren S. Simon, da Universidade da Flórida, o Efeito Halo tem uma influência real nas oportunidades que recebemos e na forma como nos destacamos.
Os autores observaram que, ao longo do tempo, a combinação de boa aparência, inteligência e uma autoimagem positiva tende a resultar em melhores condições financeiras. Isto é, aqueles que são vistos como atraentes ou inteligentes muitas vezes recebem mais encorajamento e suporte, tanto academicamente quanto em suas carreiras, chegando a maiores níveis de sucesso.
E eu aqui, vivendo de não querer julgar livros pela capa...
E eu aqui, acreditando no que diziam as minhas professoras do primário: que ser é mais importante do que ter ou parecer. Só para os mortos talvez. Para Brás Cubas. Para os estoicos. Para os que criaram os ditados populares e os clichês repetidos pelas professorinhas.
Porque, para o resto, você vale o quanto tem. Vale o quanto pode ostentar. Vale pelas marcas que irradiam suas qualidades até você. Vale pelos diplomas que tem e pelas notas de cem (ou duzentos) na carteira.
Alguns poucos te conhecem. Para o resto, você é só o brilho que reflete nos olhos alheios. No fundo (e quem se importa com profundidades?), talvez a verdade seja que, enquanto vivos, somos prisioneiros das percepções, dos estereótipos, dos julgamentos rasos.
Quem não se lembra de já ter ouvido a expressão "a primeira impressão é a que fica"? Uma sentença curta, mas que carrega um peso imenso, delimitando as fronteiras entre o que se é e o que se aparenta ser.
E como é difícil fugir desse ciclo! Como escapar da armadilha do "parecer" em um mundo que tanto valoriza o exterior? Fui à farmácia, despretensiosamente, e me dei conta de que não importa o quanto eu tenha feito, pensado ou escrito. Importa o que visto, como me apresento, o que posso comprar. Importa o brilho falso das etiquetas e das grifes.
Mesmo assim, eu sigo, meio gauche, meio torto, acreditando na palavra, na ideia, naquilo que não se vê, mas que se sente. E assim, como defunto vivo, vou sacudindo fora as capas impostas, tentando, ao menos em pequenos momentos, ser mais do que o julgamento apressado permite.
Seria possível viver no meio-termo, entre o parecer e o ser, sem se perder na superficialidade, mas também sem ser esmagado pelas próprias profundezas? Talvez. Talvez o segredo esteja em navegar entre esses dois mundos, usando o parecer apenas como uma ferramenta para abrir portas, mas jamais esquecendo que, uma vez dentro, o ser é o que realmente importa. Não sei.
Sei que, no final das contas, somos todos defuntos em construção, tentando achar um espaço onde possamos ser, só ser, enquanto ainda estamos meio que plenamente vivos.
✂️ Só pelo vídeo, aposto que ela também é bonita, organizada e rica.
🐰 Já esta daqui é elegante, descolada e fina.
✨ Este é gay. Usou glitter, é gay. (ironia ativada, tá?!)
🎶 E você, caso se interesse por este site que transforma seu nome em uma melodia, é criativo, pouco convencional e meio místico. Acertei?! (o meu ficou bem bonito!)
💣 De verdade, eu não sei. Só sei que enquanto os outros analisam roupas, sapatos, cortes e penteados, minha cabeça só faz assim.
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Bombou no Insta esta semana:
desde o início do ano, venho pensando muito sobre isso da importância da aparência. numa época em que emagreci bastante, me lembro das pessoas me tratando muito melhor do que tratam hoje, que, apesar de estar mais saudável (mental e fisicamente!), devo passar uma impressão de desleixo e preguiça. é bem real tudo isso. não preciso nem falar que me identifiquei, né?
Eu costumo sair de mendiga aqui pra dar esses roles rápidos e não dou muita bola, mas infelizmente o mundo é assim, principalmente o mundo de Tapera. Não dá pra considerar, a gente se banca e não se afeta.