"‘Você tem uma risada especial quando está com seu pai’, me diz meu marido, ‘mesmo quando o que ele fala não tem graça.’ Reconheço a risada aguda que ele imita e sei que ela tem menos a ver com o que meu pai diz do que com o fato de estar com ele. Uma risada que eu nunca mais vou dar. ‘Nunca mais’ veio para ficar. ‘Nunca mais’ parece muito injusto e punitivo. Eu vou passar o resto da vida com as mãos estendidas tentando alcançar coisas que não estão mais ali”.
{Chimamanda Ngozi Adichie, em “Notas sobre o luto”}
Eu conheço esse “nunca mais”.
Eu sei como ele comporta dentro da gente.
Ele não vem pela mesma via que as outras palavras todas.
Ele não atinge a nossa cabeça, a razão, o pensamento. Não de cara.
Ele também não desce para o coração, deixando pelo caminho um nó na garganta. Isso vem depois.
Esse “nunca mais” nos atinge primeiro é pelo meio.
Era uma sexta-feira de manhã.
Eu havia acabado de entregar a versão final da minha tese quando o telefone tocou.
Me disseram, então, três ou quatro palavras apenas.
E isso bastou para que o “nunca mais” me acertasse.
Veja se você concorda: a sensação é a de, de repente, ficar oco.
Como se fôssemos atravessados por uma bala de canhão, feito nos desenhos animados, e ficássemos com um buraco, um vazio, no meio exato do corpo. Os pés já não parecem mais saber do chão. As mãos caem abandonadas, inúteis. A cabeça se perde, tonta, tonta. É como se nosso centro de gravidade, de repente, desaparecesse. E justo no momento mais grave, naquele em que mais precisaríamos nos segurar.
Esse é o tom do “nunca mais”. Essa é a sensação.
Nunca mais eu ouviria meu pai falar patatinha, com seu sotaque alemão. Nunca mais os convites para ir comer suas galinhadas com massa (melhor que churasco, Finícios! É ou não é?!), nunca mais suas visitas diárias (fim só fer a Chúlia Helena!), nunca mais seus lábios desaparecendo quando ele ficava bravo (non, non, a Suely, olha, pelo amor te Teus!). Nunca mais!
Amanhã faz três anos. Três anos de nunca mais.
Três anos do momento em que eu não chorei porque estava todo vazio. Porque precisava adiar o meu sofrimento e primeiro resolver tudo que era prático. Havia pessoas para quem ligar, providências a tomar, todo um rito de papéis, flores e funerais, desconhecido para mim.
Era ele quem cuidava disso quando partia alguém da família (guardem isso).
Agora, nunca mais.
Nunca mais eu teria para quem ligar pedindo socorro de novo. Nunca mais.
Quando li esse trecho da Chimamanda, soube exatamente do que ela falava. Dessas mãos estendidas tentando alcançar uma ausência.
De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua, que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás{Ney Matogrosso, em “Poema”}
Mas sabe do que mais, pai?! Todo nunca mais representa o que já esteve ali. Todo nunca mais tem sempre muito do que ficou. Minhas mãos não estão vazias. Nunca estiveram. Descobri isso hoje, mas já deveria saber naquele dia. No momento mesmo em que tomei seu lugar resolvendo o que precisava ser resolvido.
Só hoje entendi. Demorei, pai. Mas entendi, porque fui no Face, procurar pela publicação que fiz no dia da sua morte. Digitei lá “pai”, cliquei em buscar. E sabe quem apareceu?
Eu mesmo.
Dezenas de publicações minhas com a Júlia. Dezenas de conversas que tivemos, das vezes em que ela me chama assim: pai. Ali percebi: você não se foi de todo. Eu não estou agarrando a sua falta.
Aquele buraco, aquele vazio, aquela sensação, era o caminho pelo qual você passou a fazer parte de mim. Se minhas mãos se estendem hoje, não é para agarrar coisa alguma, é para lançar adiante sua história. Tudo que você foi para mim. Tudo que eu quero ser para a Júlia. Tudo que ela será no futuro, lançando algo nosso ainda no mundo.
Não existe nunca mais, pai.
Eu vou passar o resto da vida com as mãos estendidas.
Ela também. E os que vierem depois. Sempre haverá mais de nós, pai. Sempre.
🪔 Eu já disse aqui que fui ateu por muito tempo? Exatamente um ano antes da morte do meu pai, comecei a assistir estas palestras aqui. Hoje, sei que foi uma preparação.
Também reconheço essa sensação de nunca mais...e também reconheço que o "nunca mais" esconde o "sempre" que estávamos acostumados. Faz quatro anos que meu pai partiu, e sempre me pego pensando nas coisas que fazíamos juntos ou que aprendi com ele...minhas mãos estão estendidas...o processo de luto para mim e os que amaram meu pai começou quase dois meses antes de sua partida definitiva. Cada visita ao hospital era uma despedida, até que veio a última. O espaço ocupado pela ausência ainda é grande. Não há espaço vazio. Só saudade.
Cai aqui por acaso e identifiquei muito do que sinto com a perda da minha mae. Fica aqui o abraco.