"Você nem sempre tem que ser a pessoa mais forte do mundo"
“— Você nem sempre tem que ser a pessoa mais forte do mundo, sabia? Você realmente precisa aceitar isso.
— Se eu não for, quem mais vai ser?”
{Lars Kepler, em ‘O homem-espelho’}
“Primeiro o que precisa, depois o que pode fazer”.
Foi assim que eu ensinei à minha filha a ordem de prioridades da vida.
Foi num dia em que ela estava atrasada para ir à escola. E eu também. Na bagunça de nos arrumarmos, ela estava se maquiando em frente ao espelho. No auge da vaidade de seus 8 anos, passava delicadamente um gloss cheio de glitter na boca, tirando com o dedo o excesso nos cantinhos e se admirando pacientemente, mandando beijinhos para o espelho.
Pacientemente demais, aliás, para quem estava só de meias, com os cabelos ainda desgrenhados e a mochila aberta com os cadernos para fora.
“Primeiro o que precisa, depois o que pode fazer, Júlia Helena!”. Disse eu, apressado, enquanto calçava meus próprios tênis, escovava os dentes e ia estender a toalha do banho.
“É uma questão de prioridades, minha filha! Você pode ir para a escola sem batom?!”
“Não!”, disse ela, fechando o gloss.
“Claro que pode! O que não pode é ir sem tênis! Não pode ir sem caderno! Não pode ir sem a água. Você já encheu a sua garrafinha?! Não! Mas está aí, com toda paciência do mundo passando batom. Não é assim! A gente faz primeiro o que precisa! Depois, se houver tempo, a gente faz o que pode, entendeu?! Primeiro, tênis, mochila, água! Depois, se der, maquiagem!”
Não sei quantas vezes mais repeti esse mesmo slogan depois desse dia. Algum sucesso tive, porque agora ela já o reza de cor, virando os olhos quando começo, deixando as sombras de lado para ir amarrar os cadarços.
“Primeiro o que precisa, depois o que pode, já sei…”.
Levo tão a sério essa lição que, na terça-feira, véspera do meu aniversário, acharam que eu havia morrido.
Acontece que eu me atrasei de verdade para o trabalho. Uma horinha apenas. 😬 Meu despertador não tocou. Simples assim. Mas já haviam acionado uma verdadeira força tarefa para resgatar meu cadáver do quarto.
“É que você é muito caxias! Nunca falta, nunca se atrasa! Achamos que alguma coisa séria havia acontecido”.
Em todo momento, em tudo na vida, eu sou o que faz o que precisa ser feito. Em casa, na família, na escola… Não importa o quanto eu me sobrecarregue, não importa o quanto eu abra mão do que quero, não importa o quanto eu me sinta desconfortável. Eu faço o que precisa.
E eu fico com o que sobra de mim. Os farelos, as migalhas, os restos. Se dá tempo, eu leio. Se consigo, eu escrevo. Se posso, eu saio para caminhar. Mas só se não houver nada mais precisando de mim naquele momento.
Pensei nisso tudo durante um show nesse fim de semana. Enquanto a dupla no palco falava de paixões e emoções, eu parei olhando para o céu e tentando entender que lugar ocupa a paixão na vida de quem só faz o que precisa.
Que lugar há para o desejo, aquele de verdade, que arrebata, que exige loucuras, que rasga camisas, numa vida burocrática e acética?! Que lugar resta para o sentimento, para a arte, para a intensidade e o vazio, numa existência que só faz o que precisa?!
À medida que os dias passam, o que "precisa" ser feito vai se acumulando como uma pilha de papéis não resolvidos. Listas de afazeres se multiplicam, como se a própria vida fosse um escritório de contabilidade, sem pausa para o almoço.
No meio dessa correria de avais e carimbos, fica cada vez mais difícil encontrar tempo para o que "pode" ser feito. A sensação é de que o necessário vai engolindo o possível, deixando para trás a paixão, o espaço para criar, sentir, viver além das funções.
De repente, estou cheio de vazios.
Estou desconectado de mim.
A arte, a literatura, a intensidade… são coisas que se situam, justamente, nesse vão entre o necessário e o possível. Elas nos lembram que a vida não pode ser apenas um cumprimento de tarefas, mas também uma criação constante.
Cada vez que abrimos um livro, assistimos a uma peça de teatro ou simplesmente nos permitimos sentir profundamente, estamos reivindicando o direito de existir de outra maneira. Estamos nos lembrando de que, dentro de nós, há mais do que um ser funcional: há um ser que sonha, que cria e que se permite ser vulnerável.
Na psicanálise, Freud nos fala sobre o conflito entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Vivemos sob o domínio do segundo, atendendo às exigências do mundo externo, adiando prazeres e recalculando desejos. Mas até quando? Até que ponto podemos adiar a experiência do que realmente nos faz sentir vivos?
Se passarmos o tempo inteiro guardando cadernos e amarrando sapatos, quando chegará a hora do gloss e dos beijos para nossa imagem no espelho?! Nunca.
Não sou eu mesmo, afinal, que ensino aos alunos que a arte é inútil e que essa é sua maior qualidade?! A arte não precisa enfeitar a sala, não precisa fazer sentido, não precisa expressar emoções. Ela é puro poder. Ela pode ser o que desejar.
Isso me faz pensar aqui que, embora minha filha tenha aprendido a lição, talvez eu a tenha ensinado errado.
Na próxima vez que eu estiver atrasado e a Júlia Helena estiver na frente do espelho, vou me lembrar de que o gloss e os beijinhos têm, sim, seu lugar. Não só porque ela é uma criança em busca de expressão, mas porque eu também preciso me permitir essa busca.
Preciso abrir espaço para o que pode ser feito, não como um luxo eventual, mas como algo tão essencial quanto o que precisa ser feito.
Afinal, não é só ela quem tem muito a aprender sobre prioridades. Eu também preciso rever a lição. Preciso encontrar dentro de mim esse espaço para a paixão, porque é dela que vem o verdadeiro poder.
O poder de existir além do necessário, de me reconectar com aquilo que me faz sentir vivo, completo, humano, não uma máquina de cumprir tarefas e dar lições.
E, talvez, seja exatamente isso que eu precise ensinar a mim mesmo: que o brilho nos lábios, assim como na vida, não pode ser relegado às sobras de tempo, mas merece estar na linha de frente, lado a lado com as responsabilidades.
Porque o que pode ser feito não é uma concessão, é uma necessidade da alma.
🦄 E que precisa, portanto, de nós.
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