“Não sei se você sabe que muitas pessoas trazem a mesma marca daquele menino. Algumas, a maioria delas, passam a vida inteira sem saber disso, outras descobrem cedo, outras tarde, algumas tarde demais, algumas nunca. Sei que se o menino não tivesse ido lá, não teria descoberto, seria no máximo um desses pescadores que olham o mar com olhar profundo. Você deve ter notado que há os que olham o mar com olhar profundo e os que olham o mar com ar torvo. Não só o mar. […]
Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio já não será o mesmo. O que vem depois, não se sabe”
{Caio Fernando Abreu, em ‘Eles’}
É sábado à noite.
Por um momento, é sábado à noite.
Você está em um bar, com quem você mais ama.
Sua família, seus amigos. Não sei. Mas você gosta da companhia. Não há nada de errado com ela. Há música ao vivo também, música boa. Rock. Você gosta de rock. Não há nada de errado com a música, nem mesmo com o volume dela.
Há iscas de peixe, ainda quentinhas e crocantes. Maionese caseira. Bastante limão, como você gosta. Um negroni descansa sobre a mesa, com meia rodela de laranja se agitando entre o gelo. Não há nada de errado com a comida ou a bebida.
Há um sábado à noite assim, disponível, pronto.
Nas mesas ao redor, as pessoas bebem, conversam, riem, cantam, se abraçam.
Na sua também.
Mas por que o seu olhar insiste em se perder?
Em se aprofundar? O que há de errado com você?!
Por que você é o único que parece não estar ali? Como se você só fosse feliz onde não pode estar? Como se estivesse sempre deslocado, desencaixado, prestes a se romper? Como se você não pertencesse ao conjunto, como se amasse só o que não conhece, como se sempre faltasse alguma coisa...
O que falta, por favor, diz para mim!
Diz porque assim, talvez, pela sua resposta eu possa encontrar a minha.
O que foi que aconteceu com você para que você carregasse essa insatisfação crônica? Não me diga que é o cansaço, que é a época do ano, as obrigações todas. Por favor. Eu não sou tão inocente assim. É outra coisa. É visceral.
O que você passou? O que você viu? O que você viveu que te deixou assim, como um desses narradores do Caio Fernando Abreu e da Clarice Lispector? Por que você sempre faz a felicidade ser difícil? Por que você não se entrega, não abraça, não canta também?! Por que você não pede um chope, porra! Garçom! Um chope na mesa 16.
Não?!
Por quê?!
Porque não é sobre a companhia, não é sobre o sábado à noite, não é sobre um chope hipotético ou o negroni real deixando uma marca sobre a mesa enquanto o gelo derrete. Tudo isso está ali, disponível, tangível, mas ao mesmo tempo inacessível a você.
A questão não é o que está na sua frente, é o que você carrega por dentro. Porque uma vez que o seu olhar se aprofundou, uma vez que você enxergou o que outros preferem ignorar, nada mais é simples.
E não digo isso como uma tentativa de aprofundar um personagem. De dizer: nossa como ele é diferente, como ele é culto, como ele é blasé, como um homem com uma dor é muito mais elegante…
Não é um dom se sentir alheio assim. Você não se sente superior, especial, não. Você se sente como o eu-lírico do Álvaro de Campos: “E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu”.
Você tenta, claro. Ri, faz piadas, disfarça. Sorri quando deveria sorrir. Mas é como se algo tivesse se desconectado entre você e o mundo. Como se, ao ver mais do que era permitido, algo tivesse se rompido. E essa ruptura te acompanha, ainda que você queira esquecê-la, ainda que tente não pensar nisso. É como aquela mancha que ficou no fundo de uma tela, invisível para todos os outros, mas que você, por saber onde ela está, não consegue parar de olhar.
Você se lembra do momento exato? Aquele instante em que o véu caiu? Quando o mundo se revelou em suas engrenagens cruas e você, sem ter pedido, entendeu. Entendeu que havia mais, muito mais, por trás das risadas e dos abraços, do som alegre que preenchia o ar. Não foi uma revelação suave. Não. Foi como ser lançado em um abismo.
Foi a Literatura que fez isso?! Essa mania de olhar para a vida estando perto demais?! Foram os traumas da infância? Foi a adoção? Foi a solidão da adolescência ou foi mais? Foi algo que você viveu? Ou foi algo que deixou de viver?! É uma doença isso?! Um transtorno, uma síndrome, não sei?!
É sábado à noite. Alguém conta uma piada. Talvez você. Todos riem.
Eles também se sentem assim?! Por dentro, eu digo… Eles também sentem a farsa de tudo? Dos peixes, do negroni, da música e do que diz a música?!
Talvez eles sintam, mas não falem. Talvez, por algum motivo que você ainda não compreende, eles tenham aprendido a ignorar. A aceitar a encenação. Quem sabe, de tanto rir das piadas e brindar com seus chopes e negronis, eles tenham se convencido de que essa é a única verdade que importa: a superfície.
E você, sem saber como, ficou preso entre essa superficialidade e a profundidade que vislumbrou, sem conseguir pertencer inteiramente a nenhum dos mundos.
Talvez, você nunca saiba. Talvez, a grande ironia seja essa: mesmo entre os seus, entre os que você ama, você estará sempre só. Porque ninguém pode entrar nesse abismo com você.
A visão do abismo é sempre solitária. E só sozinho você se sente bem.
Porque sozinho você não nota tanto o desencaixe. Você não percebe que é uma peça de quebra-cabeça entre todas as engrenagens que se encaixam e rodam bem lubrificadas, sabendo cada uma o seu papel.
É sábado à noite. Você bebe um gole do seu drink. Você olha ao redor, e tudo continua igual. As pessoas continuam rindo, a música continua tocando, o garçom continua passando com os chopes gelados.
Mas o que você vai fazer com esse sentimento de dentro? Vai seguir rindo por fora enquanto o abismo te consome? Vai tentar, de algum jeito, preencher esse vazio? Ou vai, finalmente, aceitar que essa busca sem fim, essa sensação de incompletude, é o que te torna humano?
Você não responde. Bebe mais um gole, mas o gosto não preenche.
Nunca preenche. É amargo o negroni.
É sábado à noite, e o abismo está à espreita. Só você o vê. Só você o sente. E talvez, no fundo, seja isso que te define. Não a busca por preencher o vazio, mas a aceitação de que ele estará sempre ali. E que, talvez, viver seja justamente isso: aprender a carregar o abismo sem se deixar consumir por ele. Porque, uma vez que você atravessa o limite do que é permitido enxergar, o caminho de volta desaparece para sempre.
Há só o fundo. Do copo vazio.
Garçom?!
👁 Ela viu também. Tenho certeza.
⭐ Hoje, preciso de uma esperança assim.
🌟 Quem sabe ela esteja por dentro.
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