"Viver no desgaste"
“Passaram-se anos e décadas nesse jogo, e fizemos dele uma rotina: viver no desgaste, gozar da ignomínia, essa foi nossa solda. Por quê? Talvez pelos filhos. Mas hoje de manhã já não tenho certeza disso, me sinto até indiferente em relação a eles. Agora que estou perto dos oitenta anos posso dizer que não gosto de nada da minha vida. Não gosto de você, não gosto deles, eu mesma não gosto de mim. […]
Em toda casa há uma ordem aparente e uma desordem real. […]
Os únicos laços que contam para os nossos pais são os que eles usaram a vida inteira para torturar um ao outro. […] ”
{Domenico Starnone, em 'Laços'}
Para Virginia Satir, psicoterapeuta, família é a fábrica em que as pessoas são feitas.
É nela que aprendemos nosso lugar do mundo e manifestamos quem realmente somos. Ou, caso essa instituição seja disfuncional, moldamos uma máscara que vai ocultar ao longo da vida o nosso “eu” mais verdadeiro.
Quando eu vim - vir sempre foi o verbo que minha mãe usou para mim no lugar de nascer. Quando eu vim, ganhei logo um apelido carinhoso dado por ela: Nissinho. Era um diminutivo torto e cortado de Vinícius. Carinhoso, eu sei. Mas que estampava já ali o que era esperado de mim: uma coisinha frágil, delicada, inofensiva.
O Nissinho não brincava na rua para não se sujar. O Nissinho não falava alto porque era falta de educação. O Nissinho não respondia a mãe quando ela o mandava ao mercado comprar cigarro. O Nissinho não se misturava à gentalha que eram os outros garotos do bairro. O Nissinho era o amor da mamãe.
Até não ser mais.
Até ele crescer o suficiente para se sujar.
Daí, virei para ela o Viníciooooos.
Sempre dito assim. Como quem chama. Com esse “o” inexistente e espichado. Marcando na língua o erro que eu mesmo me tornei.
O Vinícioooooos era gordo demais para ir nas festas (e então eu não ia). O Vinícioooooos ia ficar careca logo, logo (e então eu me preocupava). O Viníciooooos era preguiçoso e passava o dia inteiro trancado no quarto (para fugir dela). O Vinícioooooos era tão pior do que os outros filhos do bairro (os mesmos que antes eram a gentalha)...
Raramente somos mais desprezíveis do que com as pessoas com quem concordamos em dividir a vida. No trabalho e entre amigos, somos sempre gentis e bem-educados. Mas, quando estamos perto da pessoa amada, aquela entre toda a população do planeta com quem assumimos o maior compromisso, mostramos um mau-humor do qual os outros nem imaginam que somos capazes.
The School of Life, no livro “Calma”.
No meu post de hoje, no Instagram, eu escrevi mais sobre a teoria da Satir. Sobre como esses papéis impostos nos perseguem. Foi só quando eu abri mão de ser o Nissinho e o Viníciooooos, que eu pude ser eu mesmo: o Vinícius. Ou Vini, prazer.
Só quando eu quebrei a máscara que moldei desde a infância foi que comecei a entender que eu não precisava me encolher, me esconder, me tornar inofensivo ou útil para ser amado.
Isso exigiu tempo, autoconhecimento, terapia.
Isso exigiu anos de autodepreciação, de baixa autoestima, de depressão.
Mas deu certo, no fim. Deu certo porque me fez perceber, por eliminação, quem eu sou de verdade. O potencial que eu tenho por dentro e a necessidade de trazê-lo à tona.
O e-mail de hoje pode ter sido um pouco duro para algumas pessoas, eu sei. Mas necessário. Necessário para lembrar você de calar certas vozes lá do passado, para ouvir melhor o que você tem por dentro. Vai valer a pena. Juro.
👹 O que fazer com os cacos da máscara?! Isso.
💔 Toda vez que falo sobre o tema de hoje, recebo MUITAS respostas. Para quem se identificou, fica esse post.
❤️ Ah, essa tirinha!
📕 BÔNUS: O livro que usei na segunda citação de hoje está em promoção na Amazon e, sério, é um dos melhores que já li. Aproveite e compre clicando aqui porque assim você me ajuda com uma comissão da Amazon sem gastar nada a mais por isso. 💜