"Uma ode à realidade"
"O hobby acabaria virando profissão: nos anos seguintes, seria com a câmera no olho que Líbero se destacaria, fazendo carreira na Tribuna do Século até se aposentar. ‘Um dos pioneiros do fotojornalismo’, repetiriam na Faculdade Federal de Vindouro todas as vezes que ele subisse no palco para dar uma palestra.
E ele sempre começaria projetando uma foto da mãe, capturada à meia distância, sem que ela notasse. Uma imagem vertical, Norma de perfil, vestindo um avental surrado, sua medalhinha de Santa Lúcia no pescoço, descalça, os dedos dos pés fincados na terra, o rosto lambido por uma luz de pôr do sol. ‘Isso lá são modos de apresentar a própria mãe?’, perguntaria ela, horrorizada com seus cabelos desgrenhados, a roupa desajeitada. Mas aqueles dedos ásperos, de unhas sujas, cravados no chão, não havia metáfora melhor: isso era a fotografia para Líbero, uma ode à realidade."
{Alfredo Nugent Setubal, em 'O livro de Líbero'}
Assim que li a descrição dessa foto de Norma, não sei porque, me invadiu inteiro a imagem de Francesca (Meryl Streep) em “As pontes de Madison”.
Eu tenho certeza de que se essa foto fosse mostrada a ela (à personagem, não à atriz), ela diria que está descabelada demais, com cara de nada, a mão numa posição estranha, o vestido meio amassado… e muitas, muitas coisas mais que nós não vemos. Não vemos porque estamos absorvidos por algo mais profundo. Não vemos porque estamos tomados pela poesia da foto, daquele momento, dela mesma.
A primeira vez em que eu olhei para uma foto minha sem o peso de um olhar crítico, sem apontar cada falha, cada defeito, cada buraco na pele, foi em 2019. Faz só 3 anos que eu aprendi a me olhar sem nojo ou desprezo. E, na ocasião, eu estava drogado, diga-se de passagem.
É. Eu precisei ficar fora de mim para poder me olhar, pela primeira vez, com complacência, com generosidade, com carinho, com amor. Amor de verdade, do tipo que quase arrebenta o peito. Que faz a gente pensar: “Nossa! Como eu amo esse cara! A gente já viveu tanta coisa junto! Amo pra caralho!”.
Assim, com palavrão mesmo. O que só atesta os efeitos da droga. Eu sou careta. Não falo palavrões, nunca fumei nada, quase nem bebo. Aquele dia foi algo diferente. Um misto de experiência xamânica e acadêmica. Posso até voltar a isso em outro momento. Por enquanto, não. Não é esse o tema. É a mudança no olhar.
Até esse momento, eu nunca havia me considerado bonito. E, por isso, eu sempre procurei me esconder da vida. Eu não ia a festas. Eu não falava com as pessoas. Eu tentava sentar sempre perto da parede, num canto, no fundo, de preferência no escuro.
Cada foto minha, imaginem, era tirada a contragosto.
E eu sempre me ressentia delas.
É engraçado pensar nisso. Porque hoje, dada a distância, eu olho para essas mesmas fotos e consigo ver mais. O brilho no olho. A timidez no sorriso. Os cabelos se rebelando e explodindo em múltiplas cores. Ah, meu menino…. Que belo estrago haviam feito na sua cabecinha, ensinando você a odiar tudo isso…
Hoje, eu consigo olhar com compaixão para aquele Vinícius e perguntar a ele: Por que você se evitou tanto? Se escondeu tanto? Você parece tão bonito para mim…
Só hoje eu tenho noção de tudo que eu não vivi porque estava preso numa imagem errada. Porque não conseguia ver nada além de defeitos quando olhava para as fotos e para os espelhos.
Não acredite em tudo que pensa. Diz um mantra que eu aprendi. Às vezes, o que nós vemos é só uma percepção distorcida da coisa. No caso de Norma (da citação de hoje), a realidade era uma imagem forte, poética, sensível, não as suas unhas sujas. No caso de Francesca, a realidade era a mirada apaixonada de Robert, não o seu cabelo despenteado. No meu, era o adolescente normal que eu vejo hoje, não o trasgo que eu via na época.
Eu precisei estilhaçar a realidade para poder ver isso. Precisei abrir as portas da percepção. Precisei sair de mim.
Você não precisa. Você só tem que se dar conta de quão gloriosa é a história que há por trás das suas marcas, suas cicatrizes, seus traços. Você só precisa entender que quando os outros te olham, não veem o que te incomoda. Não focam nos defeitos em que só você reparava. Não têm na mente deles os ecos de vozes ruins que você tem na sua.
O que eles veem é a poesia da vida se escrevendo.
O que eles veem é como seu sorriso contagia.
O que eles veem é como seu olho brilha quando fala sobre o que te apaixona.
O que eles veem é o que eu vejo hoje: a perfeição da realidade.
🪞 Esse TED aqui é um dos meus favoritos. Ele demonstra como o fato de nos acharmos feios impacta em TUDO. Nas nossas amizades, oportunidades, carreiras, relacionamentos… Até na economia de um país.
✏️ Quando eu trabalho os adjetivos em sala de aula, além do TED acima, gosto também de lembrar desse vídeo. Ele ilustra o que eu escrevi hoje: a forma como os outros nos veem é bem diferente daquela que imaginamos.
🎨 E por falar em olhar, o Matheus faz um trabalho lindo! O Aure e o Erik também!