"Uma luz anterior"
"Quando sentia vontade de escrever em sua época de estudante, ela esperava encontrar uma linguagem desconhecida que revelasse coisas misteriosas, como uma vidente. Ela também imaginava que o livro pronto fosse revelar aos outros alguma coisa do seu ser, uma realização superior, uma glória— ela teria dado tudo para se tornar ‘escritora’, assim como quando era criança e desejava dormir e acordar transformada em Scarlett O’Hara. Depois, dando aulas para turmas bagunceiras de quarenta alunos, no supermercado com seu carrinho de compras, nos bancos de um jardim público ao lado de um carrinho de bebê, esses sonhos a abandonaram. Não existia esse mundo inefável que surgiria magicamente de palavras inspiradas. Ela só poderia escrever a partir da própria língua, aquela falada por todos, única ferramenta que poderia usar para tratar daquilo que a revoltava. Assim, o livro a ser feito representava um instrumento de luta. Ela não abandonou essa ambição, mas agora tudo o que mais gostaria era de poder captar a luz que toca nos rostos já desaparecidos, nos guardanapos manchados de comida nos encontros de família, essa luz que já estava nas histórias contadas aos domingos em sua infância e que continuou encostando em todas as coisas assim que eram vividas, uma luz anterior".
{Annie Ernaux, em ‘Os anos’}
De longe, escrever me parece fácil, sabia?!
De longe, é só colocar uma palavra depois da outra, prestando atenção à coesão e à coerência. À gramática e à sintaxe. Ou seja, tudo aquilo que eu estudei a vida inteira.
De longe, posso destrinchar qualquer livro. Estudar seu estilo, encontrar teorias que expliquem ou fundamentem sua forma e seu conteúdo. Sou Doutor nisso afinal - diz um papel que tenho guardado por aqui.
De longe, então, entendo a ficção como a palma da minha mão.
De perto, porém, tudo me é estranho.
Escrevo como cego, tateando num escuro interno, navegando errático por caminhos que nem sei onde darão - quando tudo que eu queria, disse antes, já estava na palma da minha mão.
Escrever é sempre inédito, é sempre inaugural, é sempre incerto para mim.
Mal escrevo e já apago porque não sei se consegui chegar no que precisava dizer. É que as palavras são poucas e a experiência é tanta… A gramática é pobre perto do que se sente em um só dia.
Ainda assim, isso é tudo que temos para comprimir, compreender e explicar a experiência humana.
Por isso, entendi tão bem o quis dizer a Annie, no trecho de hoje. Quando penso na escrita, penso em tudo que li. Em tudo que os livros fizeram por mim. Penso em como eles foram abrigo das brigas, abraço de silêncio e solidão, passagem para longe, muito longe, de mim.
Quando escrevo, de fato, não consigo colocar em verbos e substantivos meus abrigos, abraços e passagens. Coloco palavras mesmo - pelo menos para mim. E não há magia nelas que me tire daqui.
Entendem o que eu quero dizer?! É como olhar um bordado. Por mais belo que seja, quem o fez conhece seu avesso. Sabe dos pontos sem nó, das linhas soltas, dos arranjos secretos. Então, a magia não funciona. A beleza não se vê.
Quando eu leio Annie Ernaux, eu vejo essa luz anterior que ela queria tanto capturar. Porque leio sobre sua infância na França e vejo a minha em Tapera. Leio sobre sua avó e vejo a minha, sinto o cheiro até. Annie, quando lê a si mesma, só vê letras e acentos e pontos e vírgulas.
Um mágico sabe os truques do seu show, então já não crê.
Justamente quando é ele quem mais precisava acreditar na magia.
Eu só queria escrever aqui como quem pinta. Escolher o tom exato de um céu azul de uma tarde qualquer de três anos atrás. Colocar nas árvores o movimento do respirar das folhas, entregues a uma brisa pouca de verão. Queria poder trançar com pincel e tinta o tom das flores que cresceram atrás de casa sem ninguém plantar. As flores que me juravam que se eu conseguisse, se colocasse tudo isso em palavras verdadeiras, vivas, eu seria um escritor, então.
Sinto que não consegui ainda.
Que não conseguirei porque persigo sempre o fugidio.
A luz da Annie. A minha tarde…
Tudo foi feito para não durar. Mas a gente insiste em capturar as coisas. A gente insiste em pintar, fotografar, em escrever textos como esse. A gente insiste em registrar para entregar a alguém o que viveu. É isso a escrita, no fim. Uma partilha.
Uma partilha generosa, porque quem escreve fica sem nada. Abre mão da magia em troca das letras, tão poucas e pobres. Perde a luz e fica com a sensação amarga de que não chegou nem perto. Que haveria palavras mais bonitas, mais verdadeiras que dariam conta do recado. Mas não estamos à altura delas.
Um dia estaremos?!
Não sei. Mas toda vez que a escrita se faz, a luz está lá.
Ainda que não possamos vê-la.
☕️ Um poema.
📸 Uma dica de foto que gostei de saber.
🔥 Um vídeo sobre a guerra que doeu aqui.
🪷 Vários adesivos fofos.
🏡 Um perfil inteiro que me encanta.
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