"Uma herança invisível nas fotos"
“Não eram apenas as histórias que transmitiam a memória do passado, mas também os modos de caminhar, se sentar, falar e rir, chamar alguém na rua, os gestos de cada um ao comer ou segurar alguma coisa. Estes modos passavam de um corpo para o outro dos lugares mais remotos do interior da França e da Europa. Uma herança que era invisível nas fotos e que, para além das diferenças individuais e da distância entre a bondade de alguns e a maldade de outros, unia os membros da família, os moradores do bairro e todos aqueles que, segundo diziam, eram gente como a gente. Um repertório de hábitos, um somatório de gestos moldados pela infância passada no campo e a adolescência nas oficinas, antecedidas por outras infâncias, indo assim até o esquecimento”.
{Annie Ernaux, em “Os anos”}
Onde está tudo que você herdou?
Do meu pai, herdei um carro que hoje estraga no mau tempo da rua.
E muito mais do que me constitui.
Quando eu era pequeno, todo mundo colocava em xeque a maternidade da minha mãe. Não foram poucas as vezes em que perguntaram se ela era minha avó ou algo do tipo. Seus cabelos, naturalmente platinados, suas marcas de expressão, esculpidas à base de muito cigarro, entregavam uma idade que ela ainda nem tinha. E isso a afastava de mim, até na mente dos outros.
É seu netinho? Que amor!
Com meu pai, justamente o contrário acontecia. Quando, por um motivo ou outro, surgia o assunto da adoção, a reação era outra. Choque!
O quê?! Ele é adotado? Mas não pode!
O guri é a tua cara! Teu jeito de caminhar! De falar! Tudo!
Pois é.
Herdei dele meu jeito de ser. De passar ao fundo. De só responder quando alguém perguntava. Herdei a minha cor e a facilidade de me bronzear ao sol. Herdei o tom dos cabelos, as entradas, a barba falha. Herdei o corpo, o jeito de caminhar, de estar parado e até a vontade de sentar no chão.
Quando era pequeno, eu me irritava com isso.
É engraçado agora, mas eu achava que ele imitava meus gostos, meus gestos, minhas vontades. Tranquilo, ele não respondia às acusações. Aceitava pacificamente a culpa de ser quem era.
Enquanto eu é que aprendia a pegar seus gestos e jeitos para mim.
Agora sei.
Mas não passei incólume pela minha mãe também.
Embora fisicamente nos distanciássemos, por dentro eu herdei muito dela.
Herdei seu cinismo. Seus olhos de cobra ao julgar os outros. Sua tempestuosidade. Suas fúrias. Sua soberba e seu narcisismo - que misturei aos traços do meu pai até dissolver em um ensimesmamento pacífico.
Pois é. Tenho pensado muito nisso porque estou viciado na literatura da Annie Ernaux. E essa é uma questão básica para ela: até que ponto somos quem nos criou? Até que ponto conseguimos nos reinventar? Até que ponto nossos gostos, gestos, jeitos são nossos e até que ponto são consequência do lugar que habitamos?
Eu não sei dizer.
E, por não saber, passo a pergunta adiante.
E aí, quem é você: os pais que você teve, o lugar em que você nasceu e cresceu, ou algo novo e único que você construiu a partir disso?
🎭 Para não dizer que não falei de carnaval, olha que filosófica essa tirinha!
🪅 Arteterapia para esvaziar a mente.
🐰 O que é a delicadeza dessa peça e o trabalho para fazê-la?
🪣 Talvez você precise ler isso hoje.