"Um segredo sombrio e cavernoso"
"— Eu exijo de todas as minhas alunas — continua a professora de sax — que já tenham aquela penujem no corpo e no rosto, e que sejam púberes, com espinhas e uma taciturna desconfiança, e que fervam de fúria pessoal e ardor e incerteza e desânimo. Exijo que esperem no corredor por pelo menos dez minutos antes de cada aula, alimentando carinhosamente as injustiças cometidas contra elas, espicaçando sem piedade o fato de serem tão desprezíveis, como quem mexe na casca de uma ferida ou acaricia uma cicatriz. Se eu for dar aulas à sua filha, minha querida mãe irremediável e inadequada, ela precisa ser rabugenta e confusa e desajeitada e insatisfeita e equivocada. Quando ela se der conta de que seu corpo é um segredo, um segredo sombrio e cavernoso do qual sente cada vez mais vergonha, volte a me procurar. A senhora precisa me entender nesse detalhe. Não dou aula para crianças".
{Eleanor Catton, em ‘O ensaio’}
Sabe o que eu queria hoje?!
Queria poder ler seu rosto enquanto você lê essa citação.
Será que a sua testa ficou franzida pelo esforço - talvez inútil - de tentar entender o que diz essa professora de sax? Ou será que você assentiu de leve, com um sorriso de canto, identificando-se com cada linha?!
Sim, porque a Literatura é feita disso também. Não é só um decodificar de letras e um associar de sentidos. Não! Há sutilezas. Há trechos que conversam conosco e há os que não conversam. Tudo depende do que já vivemos.
Qualquer artista que tenha a alma um pouco atormentada sabe do que fala a professora de sax. É preciso atingir um certo estado de espírito para criar. É preciso ter profundidade, às vezes, para compor.
A professora exige que suas alunas já tenham experimentado o fracasso, o ardor, a incerteza. Isso nada tem a ver com a técnica de tocar saxofone, é claro. Mas tem a ver com a paixão.
Disso entendemos todos.
A paixão, a arte e a loucura andam um pouco de mãos dadas.
Uma música pode ser executada à perfeição, mas sem paixão ela não nos toca. Um texto pode ser excelente, do ponto de vista técnico. Mas sem paixão, sem algo de loucura, ele não nos diz nada.
Quando a paixão vem, a arte se faz, inunda, transborda.
Para ler bem, portanto, é preciso que já tenhamos sentido algo parecido com aquilo de que fala o texto. Ler sobre o sofrimento enquanto se sofre é muito diferente de ler o mesmo no nosso dia mais alegre.
Há conexões que se estabelecem entre os textos e nós, só assim eles fazem sentido.
E nós também.
🎭 Este vídeo dá conta de explorar um pouco a ligação entre a genialidade e a loucura que a acompanha (ou a causa?).
🧊 Loucura, aliás, é o que Pejac consegue fazer com um lápis e folhas quadriculadas.
🗣 Gosto tanto deste poema, de Adélia Prado, de Elisa Lucinda e do que ela diz sobre o poema… Tanto que ele até foi parar no post de hoje do meu Instagram.
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