"Um lugar de pertença"
“Queria encontrar um lugar de pertença. Acho que se já tivesse encontrado, não escrevia mais nada. Porque acho que escrever também é um bocadinho uma maneira de ir à procura desse lugar, à procura de uma casa. Vou percebendo enquanto escrevo que não tenho feito outra coisa a não ser tentar construir essa casa. Não tenho dúvidas de que nunca teria escrito nada se soubesse de onde sou. Ao escrever, estou à procura de tentar constituir esse lugar de onde eu possa ter vindo. Os meus livros passam um pouco por isso, por construir a minha própria família, por construir a minha própria ascendência e até a minha herança. É um pouco como se o escritor tivesse um bocadinho a tentação de não descender de ninguém. E um pouco a tentação de ser ele a inventar a família”
{Djamilia Pereira de Almeita, no poscast ‘O poema ensina a cair’}
Foi sempre a escrita quem me salvou.
Foi sempre essa voz, que me apareceu lá pelos 15, 16 anos, que conseguiu organizar o caos dentro de mim. Foi assim: quando me viciei em leitura, passei a narrar minhas próprias ações. No começo, era algo bobo, um simples exercício mental para afastar o tédio.
Era comum, por exemplo, que no meio da aula eu pensasse assim:
“A professora de matemática falava e falava, rabiscando no quadro equações, mas ele não conseguia prestar atenção. Enquanto fazia um esforço consciente para não olhar para a colega no outro lado da sala, seus cálculos mentais eram outros: a quantidade de vezes em que suas mãos se tocaram sem querer, multiplicada pelas vezes em que ele abaixou os olhos, sem força de encará-la, dividida, claro, por sua falta de coragem de dizer, enfim: eu gosto de ti”.
Narrar os meus dias passou a ser uma forma de assumir algum tipo de protagonismo. Logo eu, que sempre tive vocação para figurante, de repente aparecia como personagem principal de um narrador onisciente, que conhecia cada pensamento meu: eu mesmo.
Com o tempo, passei a escrever parte daquilo que eu pensava nos meus momentos de distração. Assim, aquela voz já não era uma narração meio esquizofrênica, mas parte do meu processo de escrita, de elaboração e reelaboração não só dos textos, mas da vida.
Ali eu entendi, hoje sei, que somos feitos de histórias. Somos o conjunto do que escolhemos e de como escolhemos contar. Uma gafe cometida em público, por exemplo, pode ser fonte de humilhação e vergonha eterna, ou apenas uma cena que compõe o charme do protagonista. (No meu caso, eu escolhia sempre a primeira versão, claro).
Fato é que, como consequência de colocar minhas experiências em verbos e substantivos, eu comecei a pensar mais e profundamente sobre tudo que me acontecia. Passei a analisar a vida e minhas reações a ela. Passei a pensar sobre as motivações alheias e as minhas. Passei a compreender como é complexa a trama que nos une e faz nossas histórias se entrelaçarem.
Adolescente e só, no interior do Rio Grande do Sul, ao meu próprio modo, eu reinventei a psicanálise. Eu descobri que escrever é como montar o quebra-cabeça do inconsciente – cada palavra uma peça que revela, aos poucos, os contornos de quem nós somos.
Assim como na psicanálise, na qual o analista escuta as associações livres que emergem do divã, eu me debruçava sobre o papel para escutar as vozes que sussurravam minhas memórias, minhas angústias e meus desejos.
Cada parágrafo era um encontro com o que eu havia reprimido, um resgate das sombras que me formavam e que, até então, eu tentava ignorar. Escrever iluminou e ampliou a minha vida. Me deu contorno e profundidade. Tudo porque, aos poucos, eu passei a intensificar também os meus atos, como se assim tornasse a história que escreveria depois mais interessante, mais plena.
Pelas palavras eu sobrevivi a tudo que de pior já me aconteceu. Porque limitei o mal. Porque o coloquei para fora, fixo em papel e tinta, não mais revolto e livre dentro de mim.
Há um livro, inclusive, de Georges Picard, cujo título convoca: “Todo mundo devia escrever”. E é justamente esse o recado que ressoa forte: escrever não é só transcrever o que se vive, mas transformar a dor em poder.
Picard nos lembra que, ao colocar nossos sentimentos em palavras, damos forma às sombras que nos assombram – e, assim, as iluminamos. Quando escrevemos, não estamos apenas narrando a nossa história; estamos construindo uma casa onde cada palavra se transforma em alicerce de uma nova liberdade.
Esta news de hoje é um convite para que a gente se liberte do peso do silêncio, para que transforme cada grito contido em uma afirmação de existência. Cada palavra, cada verso, é um ato de coragem, uma declaração de que somos mais do que o mal que carregamos.
Experimente. Sem pretensões literárias, sem necessidade de publicação, sem julgamentos ou medo do olhar do outro. Escreva para você, como exercício de navegação interna. Coloque no papel os pensamentos, conforme eles vêm, num fluxo de livre consciência. Permita-se surpreender com o que há em você.
Que cada palavra seja um grito de liberdade contra o silêncio, a afirmação de que você existe em toda a sua complexidade. Ao escrever, você se liberta das amarras do medo e revela a verdade que pulsa nos cantos da sua alma, transformando o caos interno em versos de luz.
Escreva. Escreva para si mesmo, sem julgamentos, como se cada letra fosse uma faísca que ilumina as sombras e edifica a casa onde sua essência habita – um lar ao qual pertencer. Uma casa de coragem, de paixão e de um amor-próprio que, finalmente, acende todas as luzes.
🪻Tantas, tão diversas e ainda assim, mulheres!
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🇦 De onde isso vem, afinal?!
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