"[…]
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
[…]
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro
[…]”.{Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), em 'Tabacaria'}
Angústia, depressão, desperança?
Como se chama o que eu senti este mês? A uma amiga, expliquei assim: sabe o filme Melancholia, do Lars von Trier?! Então! A personagem da Kirsten Dunst sofre tanto com a antecipação do fim de tudo, que, quando o fim se confirma, ela já está vazia. Nem se importa mais. É isso. Estou assim!
Foi depois que os versos começaram a vir até mim, começaram a colocar palavras sobre esse sentimento. A princípio, como uma música ao longe, sabe?! A gente reconhece a melodia, quase, quase consegue cantá-la, mas não lembra de quem é. Nem o que diz.
“Estou hoje como se fosse morrer” foi assim que me veio primeiro. E não era isso, eu sabia. Mas era algo assim... E de quem? Pesquisei Clarice - sempre pesquiso Clarice. Não. Eu sabia que não era dela. Caio, talvez? Não parecia. Nuno Camarneiro? Valter Hugo Mãe? Algo em mim puxava pelos portugueses…
Mas ainda demorei. Demorei para perceber: “Mas meu Deus, isso é Tabacaria!”.
Não sei quantas vezes já li, analisei e expliquei esse poema. Se eu precisasse escolher um só texto, aliás, para me representar, seria esse. Como pude, então, não reconhecê-lo?
Faz parte, pensei. Faz parte do que sinto. Às vezes até Literatura me abandona.
Mas quando os versos vieram inteiros e eu li o poema todo, lindo, pronto: me encontrei. “Tabacaria” tem um pessimismo, uma conformidade e, ao mesmo tempo, uma expectativa - sem esperança! -, que conversam muito com algo dentro de mim. Algo que tenho sentido este mês.
Estou vencido. É isso. Estou como quem soubesse a verdade, mas não conseguisse, de forma alguma, transmiti-la para quem está ao redor. Estou lúcido e estar lúcido significa se desligar de tudo. Porque tanto faz, no fim. O pior já aconteceu mesmo. O verniz já rachou. As pessoas que a gente julgava sensatas, gentis, ordeiras, hoje grasnam com ódio nos olhos e sangue nos dentes.
Nos matariam, se pudessem. Tenho certeza. Nos matariam a pauladas.
E nós nem nos defenderíamos. Eu não, ao menos. Porque não importa mais. Estou perplexo, vencido, parecendo viver em um pesadelo. Tem nome isso, aliás, esse sentimento todo dos versos de Fernando Pessoa: Desrealização.
É possível que a pessoa sinta como se estivesse em um sonho ou em uma neblina ou como se uma parede de vidro ou um véu a separasse do ambiente que a rodeia. O mundo parece sem vida, sem cor ou artificial.
É um transtorno dissociativo esse, no qual a gente se sente apartado da realidade. Nada mais parece importar porque, no fundo, nada mais parece real. As coisas sem metafísica, sem poesia, sem filosofia, sem inspiração, parecem tão… ocas, não?! O mundo é só cenário. Cenário de guerra, ainda por cima.
Ensinamos aos nossos filhos coisas bonitas, nutrimos ideais, buscamos transcendências na arte, na poesia, na natureza, em tudo que nos ultrapassa e engrandece. Para quê?! Mais vale a tabacaria do outro lado da rua, com seu dono gordo a enriquecer. Mais vale o ódio de apertar buzinas, de apontar dedos, de se pintar de auriverde e carregar orgulhoso o estandarte da verdade!
Verdade?! Hipocrisia pintada, arrumadinha, assim, sabe?!
Vai que pinta um clima?!
Então seguir para quê?!
Para que cantarmos ainda, sabe?! É isso que vem em mim de novo. É isso que me assombra e perturba outra vez. Porque enquanto perdurar o ódio, a grosseria, a vulgaridade, enquanto eu tiver medo de apanhar, de ser morto ou - pior - de ter os meus sonhos mortos, como seguir cantando?
Mais vale atravessar a rua logo, comprar um cigarro (que nunca fumei) e deixar de querer ser grande coisa. Deixar de ter metafísica e poesia. É esse o sentimento de Pessoa.
Ele sabe e sente muito mais do que o dono da Tabacaria jamais poderia adivinhar. Ele chegou ao cerne da coisa. No entanto, esse dono, cheio de certezas, cheio de garantias de ter vencido na vida, sorri satisfeito de ser empresário, de ser patrão, de ser homem de bem…
Ah, coitado, sem perceber que a voragem é quem traga tudo no final. Ele mesmo, seu negócio, a rua em que estão, a cidade, a língua que falam. Tudo. Em 1.000 anos ou menos, tudo desaparece. Tudo vira bosta, como diz a música de Rita Lee que faço questão de levar para a aula quando trabalho esse poema. Vulgarizo a metafísica eu também.
Mas o que fica, então?!
Fica a certeza estúpida do dono da Tabacaria, ou fica a angústia do poeta lúcido e apartado da realidade do outro lado? Fica o dinheiro ou fica o ideal? Fica o ódio ou fica a possibilidade de sonhar? O que fica, afinal, passada a fumaça de tanto cigarro?
Ainda não sei.
Mas até a próxima edição dessa newsletter, tenho a impressão de que vamos todos descobrir.
✏️ Para descolonizar o olhar, uma galeira inteira de artistas africanos que trabalham com arte digital. Quanto mais eu vejo, mais fico apaixonado.
🖋 Como acalmar a mente com papel e caneta - ou sobreviver a reunião.
🔨 Tudo acaba.
Obrigada por colocar em palavras essa sensação angustiante dos últimos dias! Tenho impressão que não conheço de verdade as pessoas! E, eu, que sempre me achei tão intuitiva! Como pude me enganar tanto?
Enfim, grata por definir meus sentimentos!
Desrealização. Não conhecia esse conceito. Nem o poema "Tabacaria ".
Mas a sensação, essa conheço bem desde os meus tempos de menina...
Que importa se escolho esse ou aquele caminho? No fim tudo acaba. "E não importa quem errou, foi só o tempo que ficou ".
Difícil é ensinar esperança ser esperar, e sonhar sem ter sonhos...
Que meus filhos e alunos nunca descubram a fraude que fui...