“De muitos anos para cá, só existe um dia do mês em que Michele e eu nos sentimos seguros: o dia 27. Depois recomeçamos a esperar. Agora, porém, vivo como sempre vivem os que não têm a constante preocupação com a falta de dinheiro, compreendo que a eles possam parecer possíveis todos os acontecimentos felizes e extraordinários. De fato, agora, se escuto a campainha, penso que se trata de uma surpresa boa. Esta manhã, ao voltar para casa, encontrei no portão o mensageiro de um florista com um grande buquê de rosas, esplêndidas, envoltas em celofane. Tive um sobressalto e pensei uma coisa absurda: que eram para mim. Tão absurda que olhei ao redor antes de perguntar ao rapaz, baixinho: ‘Valeria Cossati?’. Ele me encarou, surpreso, e em seguida balançou negativamente a cabeça: era para uma jovem atriz que mora no segundo andar.”
{Alba de Céspedes, em ‘Caderno Proibido’}
Ontem, concluí que o mundo, como sempre, se divide em dois grandes blocos: os criadores e os restauradores.
Os criadores são aqueles que parecem viver em um universo paralelo. São arquitetos dos próprios destinos, movidos por um combustível secreto que não se esgota.
Enquanto o mundo capota para uns, para eles parece fluir. Estão constantemente em movimento, abrindo portas e rasgando horizontes. Eles constroem negócios, planejam viagens internacionais, lançam livros e fazem tudo acontecer.
O impossível é só uma questão de planejamento, de execução, e a vida, para eles, é uma sequência de realizações que quase sempre caminham para o sucesso. Tudo parece uma consequência natural do esforço. Mas será só isso? Ou há também a mão invisível da Fortuna — antiga deusa da sorte, caprichosa e generosa (mas só para alguns)?
Eles são os meritocratas, aqueles que, com alguma razão, acreditam que trabalho duro e disciplina são as chaves do sucesso. E, de fato, para eles, são. Quando surge uma oportunidade, eles não hesitam. E quando a campainha toca, é, claro, uma boa notícia. Surpresas boas, flores na porta, conquistas. Talvez seja lei da atração, os cursos online que eles vendem, ou talvez apenas sorte — o fator que ninguém quer reconhecer, mas que está lá.
Do outro lado, existimos nós: os restauradores.
E nós vivemos uma realidade diferente. Não nos faltam esforços, dedicação ou criatividade. Nós também sonhamos, planejamos e nos dedicamos, como qualquer outro. Ou até mais. Mas para nós, o universo parece ter uma resistência, um atrito, uma inércia própria que nos impede de avançar como gostaríamos.
Se juntamos dinheiro para aquela viagem tão sonhada, o carro quebra. E não é uma simples troca de peça. É perda total.
Se conseguimos um novo emprego, alguém da família, inevitavelmente, adoece.
Se compramos aquele móvel novo, do qual ficamos até orgulhosos, a casa é castigada por uma tempestade improvável e o telhado se vai.
É assim. Sempre assim.
Parece que, para cada vitória, há uma perda que a acompanha, desequilibrando as balanças do universo de maneira implacável.
Para os restauradores, viver é um constante processo de consertar. Não apenas as coisas tangíveis, mas também as invisíveis.
Nós servimos para reparar as histórias de dor, para quebrar ciclos de violência, para remendar o passado familiar, para alinhar o caos genealógico. E isso não é pouca coisa.
Nós não carregamos apenas os próprios fardos, mas os de gerações inteiras que nos antecederam. Somos nós que pegamos esse legado quebrado e, aos poucos, tentamos restaurar, com paciência e resiliência. Mas a que custo?
Ao custo do próprio sofrimento. Eu mesmo sacrifiquei anos e anos de conquistas só colando rachaduras emocionais, tudo para não perpetuar as dores que me foram transmitidas como uma herança - nem sempre - invisível.
Enquanto uns constroem arranha-céus, nós consertamos ruínas. E continuamos a viver nelas. Enquanto uns avançam, nós passamos a vida remendando os caminhos do caos - que já estavam quebrados antes de chegarmos. E no cansaço, não sobra tempo para caminhar, assobiando e triando selfies ao pôr-do-sol.
O mundo, afinal, se divide assim: aqueles que criam, que avançam, que crescem, e aqueles que restauram. Os primeiros parecem voar enquanto os segundos, incansáveis, mantêm os pés no chão, lidando com os terremotos imprevisíveis da vida. Ambos são essenciais, mas raramente reconhecidos da mesma maneira.
Pensei em tudo isso devido à minha falta de resoluções para o ano novo. Há anos me acostumei a não esperar nada, não tecer planos, não imaginar futuros bonitos. Porque sei que estarei ocupado demais consertando cagadas. Estarei com meu dinheiro comprometido sempre em reparos, reformas, substituições do que quebrou e não serve mais. Que espaço há para o novo aqui? Que lugar a criação ocupa na vida de quem só sobrevive às gambiarras?!
Os criadores, os Michelangelos da vida, entram para a história. São celebrados, imortalizados, e suas criações se tornam o símbolo do gênio humano. Mas quem fala dos restauradores?
Quem se lembra dos que, silenciosamente, mantêm essas obras vivas e vibrantes através dos séculos? São eles que, com delicadeza e precisão, reparam cada rachadura, reconstroem cada detalhe danificado pelo tempo.
São esses artesãos, invisíveis à maioria, que evitam que a arte desapareça no esquecimento, mas ironicamente, são eles próprios engolidos pelo anonimato.
As cicatrizes que consertam não são apagadas, mas incorporadas, parte da nova narrativa que preservam. E talvez essa seja a maior arte dos restauradores: transformar as marcas da vida em parte da beleza. Mesmo que ninguém as note, mesmo que ninguém lhes atribua o mérito. Eles são os guardiões do que já foi construído, dos sonhos que outros materializaram.
Mas, por que essa divisão? Por que aceitamos que o mundo funcione assim? Por que os criadores são celebrados, enquanto os restauradores permanecem nas sombras, eternamente remendando pedaços?
O sistema que privilegia os criadores parece desenhado para manter a máquina funcionando dessa maneira, sempre exaltando aqueles que constroem o novo, enquanto aqueles que sustentam as bases, que consertam os estragos e interrompem os ciclos de dor, seguem apagados.
E talvez seja hora de questionarmos isso.
Talvez seja a hora de nós, restauradores, exigirmos mais do que apenas consertar. Talvez seja o momento de criarmos espaço para o novo, para nossas próprias criações, ao invés de gastarmos toda a energia apagando incêndios que não começamos.
Afinal, quanto tempo passaremos remendando ruínas? E quem disse que não podemos ser também criadores de nossos próprios caminhos, de nossas próprias vidas?
Eu ergo a minha voz, tento protestar. Mas a tela do notebook já começa a querer falhar e eu silencio de novo. Não tenho dinheiro para outro.
🧩 É assim.
😻 Para quem ama gatos e arte.
🪟 Minha vontade sobre tela.
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