“Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça. Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus. Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de ‘solidão de não pertencer’ começou a me invadir como heras num muro.”
{Clarice Lispector, em ‘A descoberta do mundo’}
Quinta-feira é meu aniversário.
Dizem.
E essa data sempre me lança num espiral de melancolias e filosofias.
Não pelos motivos óbvios, entendam bem. Não é medo de envelhecer, frustração pela passagem do tempo, ou essas coisas que costumam acometer quem completa outro ciclo em volta do sol. Não.
É que cada aniversário faz com que eu precise, não-subitamente, mas é como se fosse, encarar um espelho. Um espelho que eu mantenho coberto o máximo que posso, embora revele tanto de mim.
Mas é que a revelação é sempre para o outro. Já não me importo em tirar fotografias. O que ainda não suporto é me ver de súbito no espelho e entender que não somos o que nos aconteceu. Não somos o que nos fizeram. Não somos resultado de algo.
A não ser das histórias que nos contamos nas noites longas demais em que o sono não vem.
Sobre isso, há um documentário na Netflix: Diga quem sou.
Alex e Marcus são irmãos gêmeos. Quando completam 18 anos (assisti há tempos, tenho a impressão de que foi no aniversário, mas posso estar lembrando errado), Alex sofre um acidente de moto e perde a memória. Quando volta do coma, ele só consegue reconhecer Marcus e depende dele para recompor toda sua infância.
A partir de fotografias, Marcus desenha a infância dos dois. As viagens à praia, a convivência familiar, um passado feliz e asséptico. Alex nunca recupera suas lembranças e vive a partir dali com essa realidade (inventada!) pelo irmão.
Mais de 30 anos depois, na gravação do documentário, Alex vai finalmente descobrir por que o irmão carregava tanto ressentimento dos pais, a ponto de não poder perdoá-los nem no leito de morte. Ele vai entender por que Marcus é tão fechado, taciturno, infeliz. Ele vai descobrir que a infância feliz, sobre a qual construiu sua existência a partir do acidente, não passou de uma história.
Somos as histórias que contamos.
E isso não é um clichê, uma figura de linguagem, uma metáfora bonita de escritor.
Somos mesmo essas histórias. Somos as palavras que escolhemos usar, o ponto de vista que adotamos, vilões e heróis são atos discursivos. Isso porque nossas ações, nossas crenças, nosso modo de ver os outros e a nós mesmos vêm dessas histórias.
Já falo de mim…
Já olho no espelho e digo o que vejo.
Por enquanto, adio isso contando como trabalhei esse conceito com meus alunos da EJA. Usei para isso o ChatGPT. Pedi que ele criasse um depoimento em primeira pessoa, no qual uma mulher descobria ter sido traída pelo companheiro. Não me julguem, foram os alunos que sugeriram o tema. Pedi que ele fizesse toda a história como se isso tivesse acabado com a sua vida, gerado um trauma insuperável que jamais a permitisse acreditar no amor novamente.
Em um relato bem exagerado e melodramático, a personagem dizia que ela não foi feita para o amor, que foi feita para sofrer e para ser infeliz sozinha. Era só um texto criado pela inteligência artificial, eu sei, mas imagine o efeito de alguém se contando essa mesma história por anos a fio.
E eu aposto que você conhece alguém assim.
Alguém cuja vida parou por uma tragédia, por uma desgraça, por uma história.
Depois, pedi que o mesmo GPT recriasse a história, mas que desta vez a personagem visse na separação uma oportunidade de reconstruir sua vida, de se dedicar a si mesma e se reencontrar. Foi linda a diferença.
O que era uma narração chorosa, de repente, se tornou um exemplo de superação. A personagem descobriu seu valor, viajou, investiu no seu sonho de infância, cursou uma faculdade e passou a valorizar demais sua própria vida.
Histórias. Palavras. Somos feitos disso.
Aos 21 anos, enquanto eu almoçava, minha mãe disse:
“Está vendo aquele homem lá na TV?! Ele é o teu pai".
Assim, à queima-roupa, ela matou 21 anos de história. A minha história.
Sim, porque apesar de saber desde sempre que eu era adotado, a figura de um pai jamais me passou pela cabeça. O que ela me contava - e que eu aprendi a repetir - era que minha mãe devia ser uma mulher muito, muito pobre, com muitos filhos (essa parte importa!) e sem condições de criar mais um. Por isso, pensando em mim, ela teria me dado para adoção, para que alguém pudesse me dar a vida que ela jamais poderia.
Parece bonito.
Uma mentira bonita.
Mas foi essa história que cavou buracos no meu peito por anos. Especialmente perto dos meus aniversários. Era essa história que me fazia pensar assim: “Hoje é meu aniversário. Em algum lugar, uma mulher lembra de mim. Em algum lugar, ela pensa: ‘Hoje faz 10 anos (ou 8, ou 19, ou 12) que eu abandonei meu filho’." E eu entristecia de pensar na tristeza dela.
E entristecia também pelas palavras que eu nunca formei, mas que hoje sou capaz de dizer: Se ela já tinha tantos filhos e criou todos eles, por que não eu?! O que havia de errado comigo? Logo na minha vez, era filho demais?!
Quanto da minha timidez veio disso? Quanto da minha vontade de desaparecer, ao longo da vida, não foi inaugurada por essa história?! Meu sentimento de não pertencer jamais, de não ser suficiente, de sobrar, de não me encaixar, quanto dele não veio dessa história, dessa mentira?!
Aos 21, descobri que minha mãe tinha 17 anos quando eu nasci.
E nenhum filho além de mim.
Aos 21, descobri que ela não era uma prostituta, uma indigente, alguém sem eira nem beira, como me davam a entender às vezes. Ela era empregada na casa de um doutor importante. O resto é história.
O resto sou eu, sendo tirado à força dos braços dela.
O resto é tudo que passei, tudo que vivi, a mãe para quem me deram.
O resto é uma coleção de palavras, ninada por anos, contada e recontada no escuro do meu quarto, até se tornar verdade. A minha verdade. Até eu me tornar o menino que a mãe não quis.
Com quantas histórias dessas se faz uma vida?
O que se faz da vida depois de descobrir que sua história é uma mentira?
Depois de todas essas descobertas, de todas as narrativas que eu acreditava serem minhas — histórias que me embalaram, me formaram e, de algum modo, me aprisionaram —, o que me resta é olhar para os pedaços e decidir o que fazer com eles.
Resta, talvez, a parte mais difícil: reescrever. Não posso apagar o passado, não posso desfazer as palavras que foram ditas, os sentimentos que me moldaram ao longo dos anos. Mas posso escolher o que fazer com essas memórias a partir de agora. Posso, finalmente, ser o autor da minha própria história.
Sempre me disseram que somos o que nos aconteceu, que nossas experiências nos definem. Mas, com o tempo, entendi que essa visão é limitada. Somos, de fato, o que nos contamos. E essa diferença, por mais sutil que pareça, muda tudo. Porque se as histórias que contamos têm o poder de nos moldar, então podemos escolher contá-las de um jeito que não nos aprisione no passado, mas nos liberte.
Não posso mudar o fato de que passei 21 anos acreditando que não fui escolhido, que fui deixado de lado. Mas posso decidir que essa não será mais a narrativa principal da minha vida. A história de abandono, que tantas vezes ecoou no silêncio dos meus aniversários, pode finalmente ceder espaço para uma nova versão. Uma história onde a falta não define meu valor, onde a solidão de não pertencer não é o destino final, mas apenas um ponto de partida.
Se somos as histórias que contamos, então eu posso contar uma nova. E, nesta nova história, não sou mais o menino que foi deixado para trás. Sou aquele que se reencontra, que decide pertencer a si mesmo antes de buscar pertencer a alguém. Porque, ao final de tudo, essa é a verdadeira busca: não a de ser escolhido por alguém, mas a de escolher a si próprio.
Se cada aniversário é uma chance de refletir sobre quem somos, então que este seja o momento em que eu decida me tornar mais do que as histórias que me contaram. Que eu pare de medir meu valor pelas escolhas dos outros e comece a escrever uma narrativa na qual a solidão não é a protagonista, mas uma coadjuvante necessária, que prepara o terreno para algo maior.
Talvez, o maior presente que eu possa me dar neste aniversário seja esse: a liberdade de reescrever minha história, uma em que eu não seja apenas um reflexo do que me fizeram, mas alguém que, apesar de tudo, escolhe seguir em frente.
E, dessa vez, com as palavras que eu mesmo decidir usar.
🎒 Esses livrinhos me pegam todas as vezes!
ـ🫀 Em outra vida, eu era quem bordava.
📍 Que mapas formam você?
🍁 A natureza tem tantas cores…
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🙏 Gratidão!
Bombou no Insta esta semana:
Na autobiografia de Gabriel García Marquez, ele abre o livro com a seguinte frase: "A vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la."
Um abraço e feliz aniversário!!