"só esquece o mar quem mora perto do mar"
“moro a setenta quilômetros do mar
moro a duas horas e meia do mar
moro a dois ônibus ou
vinte e quatro estações de trem e
onze estações de metrô
do marmoro a tanta preguiça de ir
até o marmas todo dia piso
nos dois montes de areia
da calçada do vizinho
e lembroque só esquece o mar
quem mora perto do mareu não esqueço
que moro onde não escolhi
que moro onde posso morar e
às vezes é madrugada e faz silêncioàs vezes é madrugada e durmo
ouvindo o barulho da água
do valão diante a minha casae acordo com a boca salgada
nos olhos dois montes de areia”.
{Bruna Mitrano, em ‘Ninguém quis ver'}
Nunca senti falta do mar.
Nunca fui dado a imensidões furta-cor.
Azul?! Verde?! Que tom ele tem? Não sei.
Nunca fui dado às águas, à sua insensatez, seu perigo constante, seu movimento perpétuo. Nunca fui dado a maresias e marés, ao sal e à areia.
Nunca.
Até começar a ser.
Vi o mar pela primeira vez aos 4 anos.
E ainda hoje minha mãe conta com orgulho e satisfação como deixou que as ondas me derrubassem e me dessem de beber uns bons goles d’água: era para que eu tivesse medo, ela diz. Para que ela não precisasse se preocupar comigo nos 4 ou 5 dias que ficaríamos ali, de excursão.
Deu certo. Passei aquela temporada inteira de praia molhando só os pés, fazendo castelos de areia onde as ondas mal e mal tocavam.
Por isso, nunca senti falta do mar. Mesmo morando no interior do Rio Grande do Sul, cercado de lavouras de soja, nunca quis passar férias na praia.
Até minha filha fazer quatro anos e começar a insistir: ela queria conhecer as ondas! Levou tempo para conseguirmos ir. Dois anos até ela estar um pouco maior, até sobrar algum dinheiro, até eu vencer minhas barreiras por ela. Sempre por ela.
Júlia Helena é dada a imensidões e fluxos.
Ela é peixe que se deixa ir. Nenhuma onda a derrubou. Eu não deixei.
Queria que ela tivesse o mar do jeito certo: com fascínio em vez de medo.
E consegui.
Nos quatro ou cinco dias que passamos na praia, ela não quis fazer castelos na areia. Quis nadar, mergulhar, beber com gosto aquela água salgada, sagrada, para trazê-la consigo quando voltasse.
No tarot, a água é representada pelo naipe de copas e simboliza nossa forma de lidar com os sentimentos. Eu sou todo paus e espadas: fogo e ar, criatividade e razão. Eu não sei sentir. Do mesmo jeito que não sou (ou não era) ligado ao mar.
Desde cedo, aprendi a arrancar do peito o coração e a enterrá-lo fundo numa caixa qualquer. Essa é minha porção de terra.
Quem cresceu com uma mãe narcisista sabe o que é isto: estar triste era oferecer a ela uma vitória; estar feliz, um desafio. Cada sorriso meu despertava nela a necessidade de me ferir. E ela tinha nas mãos todos os gatilhos para fazê-lo.
Não sei se você sabe, mas narcisistas são incapazes de sentir felicidade. O que eles precisam sentir, isso sim, é superioridade. O resultado dessa combinação não poderia ser pior: a única forma de se sentir bem no inferno é sabendo que há alguém sofrendo mais do que você.
Eu fui treinado para ter medo da alegria da mesma maneira que fui treinado a ter medo do mar: sufocando. No começo, eu só fingia não sentir. Boas ou más emoções, eu só engolia tudo, para não deixá-la perceber. Para que ela não estragasse o pouco de felicidade a que eu tinha acesso fora de casa.
Com o tempo, fui ficando tão bom em fingir, que já não sentia mais mesmo.
Cortei a conexão com o coração. Parei as ondas do meu mar.
Deixei de amar.
Levou tempo para que eu me curasse.
Ainda hoje, sou uma coletânea de feridas e cicatrizes. Ainda hoje tenho águas e mágoas engasgadas. Ainda hoje salgo pesares e os ponho para secar. Mas quero voltar a falar do mar.
Estar dentro da água com a Júlia (aquela que me faz sentir) inundou salões em mim. Irrigou partes secas, fez brotar - se não flores -, corais.
Ver minha filha feliz, sem medo: nem do mar, nem da alegria, nem de mim, me fez fluir por dentro de um sentimento que eu nem sabia existir: plenitude. A história foi mudada. O ciclo foi quebrado.
Este ano, dentro do mar outra vez, eu deixei que as ondas quebrassem as minhas barreiras. Eu deixei que a água salgada invadisse as minhas faltas, meus vãos, meus nãos. Eu deixei que o sal ardesse e curasse o que ainda sangrava. Deixei.
E pela primeira vez na vida, agora sinto falta do mar.
Acordo em Tapera, cedo e seco, com saudade da praia: da cor, do cheiro, do gosto que fica nos lábios quando a gente os lambe depois. Acordo e me lembro do poema da Bruna Mitrano, da falta que faz o mar para quem mora longe dele.
No fim, agora eu sei, não fui eu que apresentei o mar à Julia Helena. Foi ela quem me fez entrar nas águas pelas mãos. Foi ela quem me deu de volta o caminho da emoção.
🌊 Depois de escolher o texto de hoje, isso me apareceu. Mergulhemos!
📻 A Literatura foi a única coisa que sempre me fez transbordar.
〰 Uma dose de arte.
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