“Não pude quebrar o gelo que me separava de mim mesma, só pude deixar que derretesse, e isso significou perder todo ponto de apoio firme, todo sentido de chão. Significou uma fusão caótica com o que parecia loucura total. Toda a minha vida eu trabalhei a partir da ferida. Curá-la significaria o fim de uma identidade — a identidade definidora. Mas a ferida curada não desaparece: sempre haverá a cicatriz. Sempre serei reconhecida pela minha cicatriz”.
{Jeanette Winterson, em ‘Por que ser feliz quando se pode ser normal?’}
Hoje, eu quero falar com você que secou.
Você que já não sente mais. Ou melhor, que não se permite sentir.
Hoje, quero falar com você que já chorou demais.
Tanto, que não sobrou nada por dentro.
Hoje, eu quero falar com você cuja pele engrossou, formando uma carapaça, um escudo, uma cicatriz.
E o que eu quero é dizer que te entendo. Que apesar de falar tanto de sentimento e de emoção por aqui, eu mesmo não me deixo sentir. Há quanto tempo? Tempo demais.
No meu caso, tudo começou quando eu percebi que minha mãe não sabia amar. Para ela, o amor sempre foi uma arma engatilhada, apontada para a cabeça de quem ousasse senti-lo.
Com meu pai foi assim. Comigo também.
Na infância, eu me deixava atingir. Bang-bang. Depois, não mais.
Meu pai se deixou atingir até o fim. Foi disso que ele morreu, aliás. Bang-bang.
Toda vez era assim: se algum de nós a contrariasse, se a desagradasse de alguma forma, ela se vingava através do que a gente sentia. Ela não discutia, ela não se inflamava, não gritava. Ela emudecia e então ela se machucava.
Ou ela caía. Ou ela parava de comer até não conseguir mais se levantar da cama. Ou ela tomava laxantes e ia parar no hospital. Uma vez, ela enfiou a mão inteira em uma frigideira de óleo quente.
De fora, parecia sempre um acidente, um infortúnio, um descuido.
Mas eu comecei a entender a relação entre uma coisa e outra ainda muito novo. Eu via a ligação entre o desagrado e a punição. Entre os seus “acidentes” e o olhar que ela nos dava enquanto mostrava as feridas, as cicatrizes e as marcas. Ela sorria. Macabra e incapaz de disfarçar, ela sorria enquanto esperava a nossa reação.
“Veja o que você me fez fazer!”
O amor machuca, esse era o recado.
E eu entendi isso bem. Entendi que eu não podia evitar. Que eu nunca seria perfeito o suficiente para que ela não me punisse se machucando. Para que ela não se imolasse por mim. Pelos meus defeitos, pelos meus pecados.
E então, o que eu fiz foi secar.
O que eu fiz foi matar em mim toda parte que sentia alguma coisa.
Como você pode ter feito em algum momento também.
O problema é que não dá pra escolher.
Não dá pra ser tão preciso ou metódico assim.
Quando você passa secante em um terreno, não pode querer matar só as ervas-daninhas. Não. Você não consegue ser tão seletivo ou específico assim. Você mata tudo que brota, inclusive as rosas, begônias e margaridas.
Quando corta o que sente, você não consegue cortar só o mal pela raiz.
Você corta tudo. Você seca tudo. Você se insensibiliza.
Hoje, quero falar com você porque não há nada mais triste do que um jardim sem flor.
E era para haver flores em você, borboletas coloridas, uma vida plena e borbulhante. Era para haver emoção nos seus olhos, paixão, ternura, empatia… não duas órbitas vazias e um coração que nem se mostra.
Você, que tem tanto potencial para amar, para sentir e fazer vibrar, não deveria ter chegado a este ponto. E eu sei. Sei que foi necessário para sobreviver. Sei que se você tivesse sentido tudo, se não tivesse se fechado assim, você não estaria mais aqui.
Eu mesmo já disse isso para a minha mãe. Se eu não tivesse secado a emoção em mim, teria dado um tiro na minha cabeça antes do fim da adolescência. Então, eu sei que foi necessário.
Mas, por favor, entenda, também é necessário semear de novo.
Também é necessário rebrotar. Também é necessário pegar toda merda à qual a gente sobreviveu e dar um jeito de transformá-la em adubo para plantar alguma coisa nova. E não precisam ser rosas, begônias e margaridas. Não ainda.
Não estamos prontos para a primavera, eu sei.
Não quero ser Poliana aqui. Não vai ficar tudo bem assim: com bons sentimentos e palavras bonitas. Mas alguma coisa precisa brotar da dor.
Podem ser cactos, unhas-de-gato e dioneias.
Devastados é que não podemos ficar.
Podem ser espinhos, agulhas e dentes.
Podem ser heras venenosas e plantas carnívoras.
É um começo, mas alguma coisa tem que brotar.
Precisamos deixar vir à tona todo ódio, todo tédio, toda raiva. Precisamos gritar e abrir fissuras na pedra que virou nosso peito. Precisamos reconhecer as cicatrizes para voltar a sentir que ainda há pele. Pele ferida. Pele grossa. Carapaça, quase. Mas pele.
Sobrevivemos.
Agora, chegou a hora de nos permitirmos viver!
⛓️ Tô me sentindo exatamente assim. Mas vai passar.
💸 Essa bateu aqui.
🚲 Bora dar um rolê?!
🍲 Vale para a cozinha e para a vida. Gosto do espaço para o improviso, para o imperfeito, para a paixão, enfim.
🫣 Não sigo o perfil, nem acompanho o trabalho deles. Mas sei exatamente sobre o que estão falando aqui. Perca a vergonha!
🪷 Quem pegou a referência?!
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