"Tomei consciência de uma evidência: estou desaparecendo. Se ninguém me toca, eu não existo. Dissolvo-me no ar, torno-me nebuloso. Meu corpo se expande [...]. As fronteiras de meu corpo já não são delimitadas pelos marcos dos apertos de mão e beijos no rosto, esses pequenos gestos que nos fazem existir fisicamente. Não é dor, é pior: torno-me o mundo. [...] Aproximo mais a mão. Desta vez, ele consegue agarrá-la. Sua mão esquerda se fecha sobre a minha. O contato é franco. Sinto uma descarga na coluna vertebral. Eu existo, sei quem sou, os contornos do meu corpo se redesenham".
{Pit Agarmen, em 'A noite devorou o mundo'}
O corpo é minha fronteira final.
Meu pesadelo. Minha prisão. Meu tormento (& delírio).
O corpo. Esse ser insuspeito que eu invoco toda vez em que digo “eu”. Esse ser estranho que tem reações que não são minhas e que eu aprendi a odiar desde cedo, muito cedo.
Eu não sou um corpo. Eu sou a minha alma. Eu sou a minha imaginação. Eu sou as minhas palavras e moro nelas. Corpo pra quê? Sou todo tecido de razão e emoção. Não de toques. Nunca de toques. Não me toquem! Eu não quero que ninguém me toque, por favor!
Era assim que eu pensava. Foi assim que eu cresci. Evitando ser tocado, me sentindo desconfortável cada vez que isso acontecia, em uma conversa, um abraço, um cumprimento.
Parecia que eu tinha nojo das outras pessoas. Mas não era. Eu tinha nojo de mim. Eu queria evitar que os outros tocassem na minha pele, em seus fluidos, suores, miasmas. Eu não queria que eles se contaminassem comigo.
Não sei quem me ensinou isso. Não sei se foram as conversas da minha mãe, os defeitos que ela não cansava de me apontar. Não sei se foram os meus colegas, para quem ser gordo era o fim da vida (social, ao menos). Não sei se houve mais na minha história, muito mais, que eu não quero nem posso contar.
Sei que aprendi que o corpo era um erro.
A primeira vez em que desfiz essa imagem, foi com o poema do Galeano que publiquei hoje de manhã no Instagram:
A Igreja diz: o corpo é uma culpa.
A Ciência diz: o corpo é uma máquina.
A publicidade diz: o corpo é um negócio.
E o corpo diz: eu sou uma festa.
Era verão. Eu havia começado a caminhar, querendo (de novo e sempre) emagrecer. E então passei a repetir isso para mim mesmo. O corpo é uma festa, o corpo é uma festa, o corpo é uma festa! E passei a acreditar. Passei a sentir o vento de outro jeito. O sol na pele. A queimação na panturrilha. Uma festa. O corpo é mesmo uma festa.
Foi pela Literatura que eu passei a aceitar o toque alheio sem me esquivar ou me encolher. Foi só então que eu entendi essa citação de hoje. De que o toque é o que nos dá contornos. Se ninguém nos toca, se ninguém nos abraça e aperta, se ninguém nos beija com carinho, ou paixão, ou voragem, não existimos completamente.
Para o filósofo George Berkeley, todo conhecimento vem da percepção. Todo nosso mundo é filtrado pelos cinco sentidos, ou seja, pelo corpo. É dele aquela famosa proposição: se uma árvore cai e não há ninguém para ouvi-la, ela faz barulho?
Se um corpo existe e não há ninguém para amá-lo - nem o próprio dono - ele é real?
Numa era que discute tanto as virtualidades, esquecer do corpo é fácil.
Deixar de existir também.
Mas para Lacan, o corpo é a ponte que une o real ao imaginário. Nossa mente e o mundo. Ele é, assim, o que dá forma ao que pensamos. O que nos permite agir sobre a realidade, experimentá-la, assimilá-la e transformá-la.
O corpo é nossa realidade última. Uma explosão de sentidos. Uma festa.
E eu espero muito que você tenha sido convidado(a) para ela.
Que você esteja vivendo seu corpo na plenitude do que toque.
🫦 Esse podcast aqui foi o que inspirou o tema de hoje.
👁 “Eu fui deixando meu corpo, fui saindo dele, porque era muito dolorido estar ali.” - veja esse trechinho aqui do documentário Todos os gêneros. Talvez você se veja numa dessas causas.
🐞 Os sentidos como porta de entrada do corpo são muito bem ilustrados aqui. E para quem ama arte, tem o background também.
🥰 Sobre a importância de todos os corpos serem representados.
☕️ Eu sei que peguei pesado hoje. Textão, links cabeças e tudo mais. Então, pra completar, vai também esse episódio do Café Filosófico: O que pode o corpo? É sensacional!
(Ah, e a news de hoje quase me fez rever a questão de ser semanal. Eu não me importo de escrever, mas quero saber o que você acha. Seguimos assim ou tem ficado muito e-mail por aí sem ler? Para você, seria melhor ser quinzenal? Mensal? Me deixe saber e pensamos juntos numa solução. Obrigado por seguir comigo e até a próxima. 💜)
Eu amoooo! Queria até mais de uma por semana!
Eu amo, Vini! Escreva como fica melhor pra vc! Se não leio na segunda, na terça eu corro aqui! Obrigada por tanto❤️