"Quem mos devolve"
“Os anos que passei
perdido no medo.
Quem mos devolve.
Quem mos devora.”{André Tecedeiro, em ‘A axila de Egon Schiele’}
“Altas ondas” - era assim que eles me chamavam, sempre liderados pelo Niemayer. Às vezes, mais criativos e ousados, eles preferiam também “Ruffles - a batata da onda”. Isso tudo por causa do meu cabelo que, quando crescia, se armava.
Hoje, isso que eles faziam tem nome: bullying. E é importante que tenha! É importante porque a gente só pode pensar sobre aquilo que consegue nominar. Entendem?!
Hoje, é fácil identificar que o problema está nos valentões, nas gozações, no desrespeito em si. Na minha época não era. Então, eu acreditava que o problema estava em mim.
Vejam bem: não no meu cabelo, mas em mim.
Se na escola o drama eram os apelidos, em casa era aquele corte mesmo. Meu cabelo era grosso e queria ser ondulado de qualquer jeito. Como se não bastasse, para qualquer evento especial, minha mãe fazia com as minhas madeixas o mesmo que com as dela: aplicava litros de laquê, formando um topete monstruoso.
Eu detestava aquele topete. Detestava pentear o cabelo para trás daquele jeito. Detestava o que aquele volume todo me fazia passar. Detestava como o meu penteado se parecia com o dela própria. Mas eu não tinha escolha, tinha?!
Tinha.
}Numa das vezes em que fui ao cabeleireiro sozinho, pedi que ele passasse a máquina um. Aproveitando a moda do corte Ronaldinho, quase raspei a cabeça toda. Quando cheguei em casa, minha mãe me disse que eu estava horrível, claro. Que careca eu ficava ainda mais gordo. Ela me convenceu a nunca mais fazer aquilo e eu aprendi a lidar com as ondas da melhor maneira.
E que maneira foi essa?! Começar a emplastar meu cabelo de gel, creme de pentear, sérum, ou qualquer um dos produtos com os quais ela enchia seu banheiro. O resultado: além de estar sempre com um aspecto seboso, manifestei uma doença crônica.
Ondas eliminadas, ao menos.
Veio, então, a fase de manipular shampoos, já que na época ninguém descobria ao certo o que eu tinha, por que o meu couro cabeludo descamava todo e virava em feridas.
Sulfeto de selênio, 2,5%.
Lembro ainda da fórmula. Lembro ainda do cheiro de ovo podre (súlfur é enxofre, se você lembrar das aulas de Química). Lembro ainda da humilhação de estar nu, ajoelhado no banheiro, enquanto minha mãe esfregava meus cabelos com suas unhas vermelhas, porque dizia que eu não sabia me lavar direito.
Eu tinha quantos anos já?!
Quinze, dezesseis?!
Na escola, o Niemayer já não precisava perder tempo comigo. Eu já nem tentava chegar perto de alguém. Tinha vergonha das cascas que meu cabelo soltava, do cheiro de ovo podre, de tudo.
Palavras importam. Eu já disse.
Hoje, eu sei que o que tenho é psoríase. Sei que ela é ativada toda vez que eu me estresso demais. Sei que passa com uma loção capilar, sem cheiro algum. Na época, tudo que eu fazia para me livrar daquilo só aumentava a minha tensão, só agravava o problema, só me afastava ainda mais de ser um adolescente normal - se é que isso existe.
E é aqui que chego ao poema e ao tema de hoje, depois dessa incursão capilar nada agradável. Quem vai me devolver as vezes em que eu sabia a resposta às perguntas feitas, mas fiquei calado, no canto da sala, torcendo para que ninguém me visse? Quem vai me dar de volta todas as festas às quais eu deixei de ir porque tinha vergonha de mim, de quem eu era, de tudo que estava na minha cabeça?! Quem vai me dar a adolescência que eu perdi, tentando me encaixar no que o Niemayer achava que deveria ser o meu cabelo?! E, olha, eu nem gostava daquele cara.
Pois é. Como eu consegui perder tanto tempo tentando agradar alguém de quem eu nem gostava?!
E quem mos devolve?
Quem mos devora?
O tempo, esse velho amigo e carrasco, é tanto devorador quanto mestre. Ele me tirou as festas, os risos, as tardes de sol que poderiam ter sido plenas. Ele devorou a confiança que, por tanto tempo, hesitei em cultivar. Cada onda alisada, cada casca que caía ao chão era uma parte de mim que ia junto, que eu deixava que fosse, achando que, talvez assim, eu pudesse existir sem incomodar, sem ser notado.
Mas o tempo também é o que devolve, não como uma reparação, mas como uma forma de renascimento. Ele devolve na forma de sabedoria, devolve em cada manhã em que olho no espelho e vejo não as ondas domadas, mas o oceano inteiro que carrego dentro de mim - e às vezes fora. Ele devolve na clareza das palavras que, antes ausentes, hoje me iluminam: eu era suficiente, sempre fui.
O que Niemayer pensava? Não importa.
O que eu pensava de mim? Ah, isso sim importa. Importa muito.
Importa meu sorriso no espelho, quando agora deixo meu cabelo crescer um pouco mais e formar ondas livres. As mesmas contra as quais eu lutei por tanto tempo. Deixo elas serem. Me deixo ser.
E é aqui que a resposta se faz clara: ninguém nos devolverá esses anos perdidos no medo, na vergonha, na tentativa vã de ser menos para não incomodar mais.
Mas a gente pode transformar o que foi devorado em força. A adolescência perdida, as palavras não ditas, as festas não vividas... elas viraram a base do que somos hoje.
Eu não mais “Altas ondas”. Não sou mais calado.
Sou tempestade. Sou mar revolto.
E você… que lide com isso, esteja onde estiver, Niemayer.
Eu hoje escolho não perder tempo tentando agradar quem nem deveria importar.
☁️ Uma animação de cabelos cacheados para você!
📸 “O amor esteve lá”. Gostei dessa mensagem.
🌷 Enviei esse poema na news exclusiva da semana passada. Mas você merece ver também.
❤️🩹 Cuidem dos adolescentes! Eles têm muitas nóias e não precisam ter.
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