" Que você se lembre"
“As orquídeas têm o defeito, segundo o André dizia, de passarem muito tempo sem flores, hibernam no meio da sua sala boa parte do ano, e ainda assim exigem que você se lembre, o tempo todo, de que aquele graveto seco e antiestético é uma planta viva, é preciso lembrar que ela existe, que um dia vai voltar a florir e que esse é o propósito dela, é preciso molhar a terra desolada em torno do graveto, de vez em quando presentear com uns minerais, e ainda assim é um graveto, uma promessa, é perigosíssimo ter uma orquídea em casa porque fica muito fácil esquecer que está viva.”
{Mariana Salomão Carrara, em ‘Não fossem as sílabas do sábado’}
Somos todos orquídeas aqui.
Alguns explodem em floração, bem agora.
Que bom para vocês!
Outros…
Outros hibernam, parecendo meio mortos por dentro.
Só… exangues de tudo, desiludidos das primaveras que já passaram, dos outonos inclementes e dos invernos rigorosos. Afinal, tanta flor serviu de quê?!
Olhando assim, são só caules secos.
Cansados. Profundamente cansados.
Eu mesmo tenho estado assim, desconectado da minha essência. Quase esquecendo que é preciso irrigar as promessas de flores, não os caules secos. É preciso lembrar das brotações passadas, das sementes, das épocas em que ainda havia vida.
É fácil esquecer.
Por isso, tenho colecionado lembranças.
Tenho percorrido - mais do que cenas - sentimentos, momentos em que fui orquídea cumprindo sua função de ser. Tenho tirado ao sol minhas memórias, para que se espante delas o mofo que vem, os pulgões. Tenho voltado, passo a passo, a sentir o passado, em busca de um sentido qualquer.
Como se, ao encontrar quem fui, eu pudesse me trazer de volta para a sensação de ser, de estar presente, de me sentir feliz, de fazer uma flor.
Sim, eu tenho criado subterfúgios para me lembrar de como é ser feliz.
E não são grandes os meus momentos, são flashes delicados.
São lembranças que jamais caíram na caixa de retratos, pétalas do que aconteceu.
O cheiro, quase, de quando havia flor.
Eu lembro, por exemplo, da sensação de ter meu próprio programa de televisão, aos 7 anos, no espelho grande do quarto das roupas. Sim, tínhamos um quarto só de roupas nessa época, montanhas e montanhas de vestidos, casacos e paletós. Tudo virava figurino e eu me partia nas lascas do espelho trincado em vários - entrevistador e entrevistado. Aquela inocência, aquela falta de sentido, aquela magia de uma tarde inteira à toa, eu queria aqui.
A sensação de ir dormir sabendo que, no outro dia, eu viajaria com meu pai de caminhão. Como eu consigo explicar a sensação? Era bom! Era uma mistura de ansiedade e medo, expectativa e senso de aventura. O que encontraríamos pela estrada? Em que lugares iríamos? Quantas vezes eu poderia ouvir a mesma fita K7 no rádio do caminhão? Será que eu havia lembrado de pegar todos os brinquedos dos quais precisava? Pararíamos no restaurante que fazia o sanduíche que eu amava? Eu mal fechava os olhos e já era hora de ir.
Escolher um livro na biblioteca. Primeiro como criança, indo pelas cores, pelas ilustrações, pelas coleções que me faziam crescer nos olhos a vontade de ler. Depois, já adolescente, sendo guiado pelo medo e o prazer de desbravar a literatura para adultos, a excitação e o drama, lado a lado, enquanto a bibliotecária escrevia meu nome na fichinha e a data de devolução.
A esperança que nos preencheu a todos quando meu colega de escola foi o primeiro de nós a namorar. Aquela certeza de que nós seríamos os próximos, de que também teríamos alguém em quem pensar à noite, alguém para esperar na saída da escola, alguém que nos faria mentir para os nossos pais para passar a tarde sozinhos na casa dela…
E sensação que vinha quando o ano letivo acabava?! Quando tínhamos a expectativa das férias, dias e dias a perder de vista, sem nada para nos preocupar. A certeza das piscinas, dos passeios, dos parques, dos sorvetes derramados, escorrendo pelas mãos e adoçando os dedos que chuparíamos com barulho.
Por um momento, eu me deito e tenho 17 anos de novo, então. Ouço meus CDs no escuro do quarto, a janela está aberta e entra um ar frio que faz as cortinas brancas balançarem. Deitado no chão, nu, eu olho para o céu e penso em que tudo poderá vir, traço sonhos de imensidão, queimo incensos, velas e às vezes a mão. Tantos futuros escritos nela.
Minha filha bebê, dormindo no meu colo, segura, confiando sua vidinha toda a mim, tranquila como só um bebê que dorme consegue ser. Aquela entrega, aquele cheiro bom que vinha dos seus cabelos, aquele ressoar leve e melódico, meu coração parecendo em flor de tanto sentimento…
Tudo isso eu coleciono aqui.
Em cada momento que volto, tento acessar o que eu senti, fazer correr de novo no meu sangue aquela enxurrada de dopamina, para que ela lave todo cortisol do último ano, para que ela me lembre que a felicidade é coisa que existe. Coisa que eu sei fazer.
Como é perigoso esquecer que somos orquídeas. Perigoso porque, com o tempo, a gente para de acreditar que pode brotar. Para de acreditar que ainda sabe como fazer flor.
Mas a verdade é que essa possibilidade sempre esteve ali, guardada nas dobras das nossas lembranças, nas fendas das nossas memórias, nos lugares mais escondidos que a vida deixou.
O que faço agora, então, é regar.
Regar com calma. Com cuidado. Porque a felicidade não explode em cor todas as manhãs. Ela exige paciência. Exige que se acredite no invisível, no que ainda vai ser.
Recolho meus momentos, meus pedacinhos de vida e, pouco a pouco, vou transformando cada um deles em nutrientes. Não são grandes gestos, não são feitos extraordinários. São pequenos respiros. Pequenos milagres cotidianos que, de repente, se abrem, como flor.
E então eu entendo: ser feliz é acreditar. É preciso regar mesmo quando parece que nada floresce. É preciso acreditar nas primaveras distantes. É preciso ter fé nos gravetos secos, e crer que, a qualquer momento, a vida pode brotar de novo.
E assim sigo, com regador em mãos, nutrindo o invisível. Sigo, porque a vida também floresce nas horas improváveis, na terra que parecia árida. É nos dias de sol tímido e de chuva inesperada que, de repente, sem aviso, a primeira pétala se abre. E quando menos se espera, somos surpreendidos pela beleza que renasce de nós.
Afinal, somos orquídeas.
Mesmo quando o mundo nos esquece, mesmo quando nos esquecemos de nós. Sempre haverá, em algum lugar, a promessa de uma primavera só nossa.
🐱 Adorei ser um gato por alguns segundos e correr nas poças de chuva.
☂️ “Existe um mundo além do que vemos, onde a realidade se transforma em encantamento.”
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