"Que possamos começar a corporificar a noção de mudança"

jul 15, 2024

“Quando digo a palavra ‘guarda-chuva’, vemos o objeto na nossa mente. Vemos uma espécie de bengala com varetas de metal dobráveis em cima, que formam um tipo de armação para um tecido impermeável, o qual, quando aberto, vai nos proteger da chuva. […] Quando você rasga o pano do guarda-chuva, ele ainda é um guarda-chuva? Você abre as varetas, ergue a armação acima da cabeça, caminha debaixo da chuva e fica todo ensopado. É possível continuar a chamar esse objeto de guarda-chuva? Em geral, as pessoas fazem isso. No máximo, dirão que o guarda-chuva está quebrado. Para mim isso constitui um erro sério, a fonte de todos os nossos problemas. Como já não pode mais desempenhar sua função, o guarda-chuva deixou de ser guarda-chuva. Pode até se parecer com um guarda-chuva, pode ter sido um guarda-chuva no passado, mas agora se transformou em outra coisa. A palavra, porém, permaneceu a mesma. Portanto, ela não pode mais exprimir a coisa. É imprecisa; é falsa; oculta a coisa que deveria revelar. E se não conseguimos sequer denominar um objeto trivial, cotidiano, que seguramos em nossa mão, como podemos pretender falar das coisas que nos dizem respeito mais a fundo? A menos que possamos começar a corporificar a noção de mudança nas palavras que usamos, continuaremos perdidos".
{Paul Auster, em ‘A Trilogia de Nova York’}

Somando tudo que quebraram em você com tudo aquilo que você mesmo resolveu aparar, como você deveria estar se chamando agora?! Talvez essa pergunta não seja apenas sobre um nome, mas sobre a essência de quem você se tornou após as inúmeras transformações que a vida lhe impôs e as que você mesmo escolheu.

A cada dia, pequenas fraturas e grandes rupturas moldam o nosso ser. Somos feitos tanto das cicatrizes quanto das vitórias, dos sonhos desfeitos e dos reconstruídos. O nome que nos foi dado ao nascer carrega uma história, mas será que ainda nos representa depois de tantas marés?

O Vinícius levado à pia de batismo tem pouco a ver com o Vinícius que congela os dedos ao digitar este texto agora. O Vinícius que respondia à chamada na escola não reconheceria na rua o Vinícius que sai caminhar no asfalto nas tardes de sol. O Vinícius que se formou em Letras, sonhando ser escritor, olharia com desconfiança para o Vinícius dos vídeos no Instagram.

Então, como eu deveria estar me chamando hoje?!

Este texto, claro, não é sobre nomes.
É sobre o que muda e o que permanece.

Como o guarda-chuva de Auster, que mantém seu nome após perder a sua função primordial, ainda nos agarramos ao que conhecemos, seja por conforto, seja por medo do desconhecido. Mas, assim como o objeto danificado, talvez não sejamos mais quem o nome sugere.

Outro dia, ouvi um podcast sobre um menino que adotou outro nome em situações específicas. Era como um alter ego, alguém que assumia sua posição e fazia o que ele próprio não tinha coragem de fazer. O Marcos era tímido, quieto e pouco confiante. Já o Eduardo, digamos, era pura ousadia. Ele se vestia de outra forma, falava diferente e se sentia mesmo empoderado. Sempre que o Marcos precisava, o Eduardo vinha em seu socorro.

Quando pequeno, eu queria me chamar Gabriel. Achava que seria incrível porque daí eu não teria um nome propriamente dito, apenas dois sobrenomes. Explico: o Linné vem do meu pai. E o sobrenome de solteira da minha mãe é mesmo este: Gabriel.
Logo, Gabriel Linné seria a junção de ambos.

Hoje, eu vejo como isso não era um simples jogo de palavras. Nem uma homenagem ao meu avô, Seu Raimundo Francisco Gabriel. Era a minha forma de não ser alguém. De abdicar até mesmo de um nome próprio. De ser só dos outros e do que eles quisessem fazer de mim.

“Mundo, mundo, vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo, mundo, vasto mundo
Mais vasto é meu coração”

{Carlos Drummond de Andrade, em ‘Poema de sete faces’}

Se pudéssemos escolher um nome agora, ele deveria refletir não apenas o que fomos, mas o que aspiramos ser. Um nome que abraçasse tanto as rachaduras quanto a luz que por elas entra. Um nome que seja menos uma âncora e mais uma vela ao vento. Que não carregasse nossa história, nossos traumas, o que os outros pensam a nosso respeito. Um nome novo, uma história limpa, uma vida outra.

Afinal, não somos apenas o resultado de nossas experiências, mas também dos nossos pensamentos, das palavras que escolhemos. O nome é importante, mas o significado que atribuímos a ele é ainda mais. Ele pode ser um lembrete de nossa jornada, um sinal de nossa resiliência, uma promessa de renovação.

Meus documentos afirmam que eu sou Vinícius Linné. Meus amigos me chama de Vini. Minha mãe me chamava de Nissinho - na época em que ainda me amava. Para meu pai, sempre fui o Finícios, atravessado por seu sotaque alemão. Para a Júlia, sou só Paiêêêê. E cada nome desses carrega uma história. Cada palavra me compõe, forma quem eu sou.

Mas está na hora disso tudo mudar. Não com uma troca de nome, mas de significados. Está na hora de mudar de lugar, de contexto, de sentidos. Enquanto eu estiver aqui, no mesmo ponto final, carrego comigo tudo que vivi, a família da qual eu vim, o menino da pia de batismo, o adolescente da escola, o professor inexperiente...

Até então, eu sempre quis permanecer aqui, nesta cidade com nome de casa abandonada. Mas agora essa vontade se desfez, esboroou-se e eu quero uma nova história. Um novo nome. Ou melhor, novos significados para o nome que carrego desde que nasci.

Em outro podcast, ouvi isto: que não podemos ter uma nova história no mesmo lugar em que nascemos e crescemos. Afinal, as pessoas em volta sempre se lembrarão de quem fomos um dia. Das nossas besteiras de criança, das vergonhas da adolescência, das burradas da juventude. Elas jamais nos levarão a sério como os adultos que nos tornamos. Por isso é preciso mudar, desenraizar, ser alguém novo para quem nos conhecer a partir de agora.

“JULIETA - Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume”.
{Willian Shakespeare, em ‘Romeu e Julieta’}

Talvez, a resposta não esteja em um nome, mas na coragem de continuar a caminhar sob a chuva, mesmo quando o guarda-chuva já não serve mais. Eu não preciso de um novo nome para começar uma nova história; preciso de novos significados, experiências e conexões.

Vinícius, Vini, Nissinho, Finícios, Paiê... todos eles sou eu, e eu sou todos eles.
Mas também sou algo mais, algo em formação, algo que ainda está por vir, algo que eu mesmo preciso descobrir ainda.

Mas sinto que não vou descobrir aqui, à sombra de quem fui.

Como não posso mudar o meu nome, vou mudar então a minha história.
O nome da minha cidade, da minha rua, de quem eu conheço e de quem me reconhece. Vou fazer o que Auster sugere: “corporificar a noção de mudança nas palavras que usamos”.

E você, se pudesse, que nome mudaria hoje?!