"Que experiência você gostaria de ter?"
"Eu não sabia por que destruía aquelas bonecas. Mas sabia que mais ninguém me perguntava o que eu queria ganhar no Natal. Se algum adulto com o poder para atender os meus desejos me tivesse levado a sério e perguntado o que eu queria, ficaria sabendo que eu não queria ter nada, possuir nenhum objeto. Queria era sentir alguma coisa no dia de Natal. A verdadeira pergunta seria: “Querida Claudia, que experiência você gostaria de ter no Natal?”. E eu teria respondido: “Quero sentar no banquinho da cozinha da vovó, com o colo cheio de lilases, e ouvir o vovô tocar o violino dele só para mim."
{Toni Morrison, em 'O olho mais azul'}
Sei que ainda não é Natal. Por isso, até pensei em guardar essa citação para mais tarde, na mesma caixa empoeirada das bolinhas coloridas e das guirlandas de plástico. Mas não pude. Não pude porque algo em mim vibrou e quis meu presente agora mesmo.
Se não uma sensação, então a lembrança de uma sensação.
Que isso me baste por hoje, já que o Natal ainda demora.
E a lembrança começa assim, com uma folha cheirando a álcool indo parar na minha mão. Era só o tema do dia e eu estava no Jardim de Infância ainda. Mas lembro de como fiquei fascinado pelos desenhos. Devíamos estar estudando o corpo humano ou qualquer coisa assim. Sei que naquela tarde recebemos recém-mimeografados aqueles traços roxos que formavam uma boneca e suas roupas. Eram tantos detalhes, tantos! Tantas roupas, vestidos, sapatos, meias até!
Nada que empolgasse os outros meninos, é bem verdade, mas eu que gostava tanto de recortes, colagens e de montar possibilidades fiquei encantado.
Tanto, que não guardei a folha na mochila, por medo de amassá-la.
(Quantas coisas mais eu estraguei assim? Justamente por medo de amassá-las?!)
Acontece que enquanto íamos para casa, a pé, meu avô e eu, começou o maior toró. Minha folha, claro, molhou inteira naquela confusão de correr, querer abrir a mochila e ser arrastado pela mão, “Vamos, Vinícius! Schnell!” - que era o jeito do meu vô de dizer “rápido” em alemão.
Quando chegamos na casa dele (meus pais estavam viajando), eu estava inconsolável. Eu chorava de nem poder dizer o porquê. Faltava ar. Faltava sentido. Sobrava sentir.
Se eu pudesse me explicar naquela época com o que sei hoje, não diria que tanto sofrimento era só pela folha de papel. Diria que era por conta da expectativa quebrada. Diria que era dó de uma alegria tão pequena e tão pouca, aquela antecipação de pintar, recortar, brincar, que me fora roubada assim, de supetão. Diria que era uma mistura de decepção (Por que não guardei logo na mochila a folha!? Tudo culpa minha!) e revolta (Por que logo nessa hora Deus precisava mandar a sua chuva? Ele então é como a minha mãe? Não pode nunca me ver contente!?).
De algum modo, acho que conseguiram me acalmar e eu expliquei, decerto, o porquê de tanto sentimento transbordando. Sei disso porque, quando saí do banho quente, com meu pijama de carrinhos coloridos, quando entrei na cozinha quentinha pelo calor do fogão à lenha, quando olhei ainda com revolta para as gotas d’água escorrendo na janela, minha vó me entregou a folha já seca e quentinha: ela havia passado a ferro.
Era um consolo triste, olhando em retrocesso. A folha não era mais perfeita. Aqui e ali a tinta havia saído. Aqui e ali havia ondulações que não sairiam mais. Mas era o melhor que se podia fazer. Ao menos daria para pintar, recortar, brincar. Daria.
E foi isso que eu fiz, de dentro da cabana que eles sempre me deixavam montar na cozinha, comendo pão com leite morno e açúcar, sentindo o cheiro bom da coberta de penas lavada com sabão, ouvindo a chuva lá fora, já sem drama, sendo só feliz ali.
Essa sensação…
Essa sensação eu queria de volta. O sabão de pedra no tanque. O forno de barro no quintal em que o pão era assado. Os estalos da madeira no fogão. O buraco no meio do assoalho, um nó de pinho, em que eu e o vô jogávamos bolita. O metal frio das cadeiras, com seu courvin vermelho nos assentos e encostos. O meu pijama branco, canelado, de carrinhos verdes, vermelhos, azuis e amarelos…. Eu queria de volta tudo isso. Mas acima de tudo, tudo mais, eu queria de volta, por um momento que fosse, a sensação de ser cuidado por alguém. Porque, meu Deus, desde que o meu pai morreu eu estou tão, tão, tão sozinho aqui.
Eu tenho quem me ame, claro. Quem me mime até. Mas eu só queria hoje a sensação que tinha ali: de que havia um adulto responsável me permitindo ser criança, aliviando meus dramas, resolvendo meus problemas, me dizendo exatamente o que fazer, com um pão caseiro e leite morno de lambuja.
Segurança e pertencimento. Esse é o nome da sensação que eu queria de Natal. Esse é o nome da sensação que eu persigo desde que abri os olhos, acho. E que eu até encontrei algumas vezes, como nessa lembrança, só para ter um gostinho do que estaria perdendo depois.
Segurança e pertencimento. Num desenho quente, numa casa quente, com chuva lá fora e uma cabana aqui dentro, penas para todos os lados. Só isso.
Mas quem me trará esse presente, em um Natal assim, tão fora de época?!
Quem tem segurança e pertencimento de sobra, em plena segunda-feira, para repartir comigo, que nem sempre fui um bom menino? Quem?!
🎷 Que vídeo! Que estética! Que música! Dói, mas é uma dor confortável, como uma saudade da infância.
🦊 Adoro a paciência dessa raposinha, esperando ficar pronta. Vale a pena olhar as outras obras do perfil.
🔦 Se você gosta de fotografia, aposto que vai ficar pensando em como reproduzir isso em casa.
🪩 Você já ouviu falar em caleidoscópio? Então olhe isso! Qual o seu favorito?
4. Mandar um pix de qualquer valor (qualquer mesmo!) para: vinicius.linne@gmail.com. Vou ficar grato demais pelo seu incentivo para continuar produzindo arte por aqui. 💛