“Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. […] Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.”
{Clarice Lispector, em ‘Um sopro de vida: pulsações’}
São 8 bilhões de pessoas lá fora.
Pelo menos é o que dizem os documentos das Nações Unidas.
8 bilhões!
Com quantas delas você pode contar?!
Eu podia contar com uma. Uma pessoa só. Só para ela eu era capaz de me confessar fraco. Com ela, eu não tinha vaidades, pudores, receios. Era capaz de pedir e buscar ajuda. Para ela, eu podia mostrar meu desespero sem julgamentos. Para ela, e só para ela, eu podia me abrir por completo. Podia me dizer pequeno e fraco, perdido e triste. Tenho andado tão triste, meu Deus.
Para vocês terem uma ideia, eu podia chamá-la para me ensinar a trocar um pneu. Ou resolver pepinos nos cartórios. Ou podar as parreiras de uva. Ou me buscar em qualquer outra cidade desse planeta, porque eu sei que ela iria. Dia ou noite. Tempestade ou vulcão.
Mesmo sem nunca dizer, ela me amava tanto assim.
Eu tenho amigos, claro. Bons amigos até. Amigos do tipo que me ajudariam a acobertar um crime, se necessário. Mas eu não posso ligar para nenhum deles agora e dizer: me ajuda aqui, por favor, porque meu coração tem um buraco por dentro e eu estou pensando em acabar com tudo.
Não posso.
Não devo e não vou.
Só para ela eu diria coisas assim. Porque ela saberia medir o quanto disso é drama e o quanto é um pedido de socorro mesmo. Ela saberia o que dizer, como me fazer ver que não está tudo tão perdido assim. Só um pouco. Um pouco sim.
Para ela, eu falaria do ódio que minha mãe sente por mim. Das dívidas dela que eu estou tendo que pagar. Do carro que está falhando cada dia mais e eu não tenho dinheiro para arrumar. Da falta de perspectiva na minha carreira, de um Doutorado que serve para muito pouco. Dos textos que eu não escrevo porque nem tenho tempo. Das armadilhas que espalho no meu caminho, querendo mesmo é cair.
Ela saberia porque eu quero tanto cair e não seria piegas, ou errada, ou dramática.
Eu tenho família também. Uma mulher e uma filha. Mas são elas que dependem de mim, não o contrário. Elas me olham com olhos grandes, querendo ver em mim soluções e sorrisos, respectivamente. Eu já não olho de volta. Não tenho mais o que dar. É fundo assim o buraco de dentro. Engoliu tudo, inclusive meu eu.
Para quem eu digo que me perdi aqui e tenho medo de nunca mais me encontrar?
Onde eu registro que gratifica-se a quem conseguir me trazer de volta a vontade de sorrir? Com quem eu falo para reclamar da vida e pedir ajuda, porque não dei conta sozinho? Deu Game Over na tela e eu não posso reiniciar.
8 bilhões.
8 bilhões de pessoas na Terra.
Só uma delas teria a corda certa para me resgatar.
E ela morreu.
Agora, sou só um menino sem pai.
E não deveria ser. Não deveria ser esse poço cheio de autopiedade e pieguice.
Mas quem vai me dizer isso? Quem vai me colocar nos trilhos?
Talvez o trecho de Clarice, que hoje repeti baixinho, como prece.
Talvez este Deus que não responde, que não se mostra, que não se move, que não me habita quando eu mais preciso.
Eu tenho coragem, Senhor, de viver os trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Tenho, juro que sim. Mas este ano é bissexto, meu Deus, e eu já não sei o que fazer de mim.
🌍 8 bilhões de pessoas experimentam o dia de hoje de uma forma única.
🐈⬛ Nunca mais vou olhar uma máquina de costura dessas do mesmo jeito.
📜 Este poema sobre olhar para trás, apesar da desesperança, me pegou.
🪄 É preocupante: nossos adolescentes querem fugir daqui.
Duas perguntas: 1. Quem pode culpá-los? e 2. O que isso revela sobre nossos tempos?
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Bombou no Insta esta semana:
para viver os 365 dias de que fala clarice (ou 366 do ano bissexto), é melhor pensar um dia de cada vez.
Que a sua escrita tão visceral seja parte do seu elixir de coragem, alívio para dor e companhia para a solidão.
Muitas vezes os seus textos são difíceis de engolir e digerir - e é isso que os fazem os melhores textos na minha bolha internética.