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"Uma pergunta: por que ela não me amou?
Será que não estou qualificado ao amor de minha mãe?Durante longos anos, essa pergunta veio queimando meu coração e corroendo meu espírito. Minha mãe talvez não tenha me amado porque havia algo terrivelmente errado comigo. Pode ser que haja uma nódoa em mim desde a nascença. Posso ter vindo ao mundo só para que os outros desviem o olhar de mim."
{Haruki Murakami, em 'Kafka à beira-mar'}
Eu queria poupar você disso, juro.
Mas não sei escrever por encomenda. Não sei sortear assuntos em um copo. Não sei ser tranquilo e leve se tudo dentro de mim explode e grita e exige uma escritura.
Enquanto escrevo, não ouço meus gritos.
Ontem, foi o Dia das Mães.
E esse dia será sempre meu pior momento do ano.
Parafraseando Quintana, num poema sobre amores, eu poderia escrever assim:
Duas mães... Quem me deu.
Tão estranha sorte assim?
Duas mães, tenho-as eu.
E nenhuma delas tem a mim!
Passar o domingo e os dias que o antecedem ouvindo falar sobre o amor de mãe, um amor incondicional, incomensurável, maior que tudo que há… me deixa… oco. É essa a palavra? É esse o sentimento!
Oco porque desperta em mim essa dúvida descrita pelo Murakami: O que há de errado comigo? Se eu não fui digno desse amor que é o primeiro, o maior, o mais duradouro… que outro amor poderia me vir?!
Minha primeira mãe abriu mão de mim. Não por amor, não por abnegação, não pensando em um futuro melhor. Não. Só porque era mais conveniente. A minha segunda mãe me agarrou com suas unhas vermelhas. Não por paixão, não por cuidado, não por zelo. Mas porque era a melhor forma de me quebrar inteiro. E um filhinho quebrado sempre precisa da mamãe, não?!
Não!
E para entender como cheguei a esse não, definitivo, você precisa descer comigo um pouco. Às vezes, só o início explica o fim.
É assim: eu preciso que você segure a minha mão a partir daqui. Não como a Clarice pede ao leitor em G.H., para ela ter coragem de contar o que lhe aconteceu. Não. Eu sou autossuficiente demais para isso. Peço que você segure a minha mão porque as escadas para dentro de mim são íngremes. E porque o escuro é muito. É meu cuidado com você.
Segure a minha mão, então. E eu prometo não soltar.
Aqui começa o primeiro lance de escadas. São três. Cada vez mais baixos.
Vamos.
O primeiro Dia das Mães do qual me lembro é o de 92. Eu tinha 4 anos então. Estava no Jardim de Infância. A profe Marli organizou uma apresentação com todo carinho. Não sei se era um poema, uma música, uma coreografia… Não lembro disso. Lembro do momento final, quando as cortinas voltaram a se abrir e SURPRESA! Estávamos todos nós no palco, segurando uma rosa vermelha para a mamãe!
Eu tenho flashes desse momento.
Vejo o pano marrom e branco - xadrezinho, a poucos centímetros do meu nariz. Eu estava bem na frente. Era o segundo mais baixinho da turma. Éramos em 27 alunos. Ríamos de expectativa e vergonha e medo. Vejo a cortina se abrir. Vejo as mães aplaudindo, todas elas, mas meus olhos procuram por uma só: a minha.
Não a vejo.
As mães não esperam que desçamos. Não. Elas vêm, todas juntas, agarrar seus filhos, numa confusão de braços e abraços e sorrisos e lágrimas e pernas sendo levantadas.
Do meio disso tudo, eu lembro da sensação. Da sensação de ficar sozinho no palco. De não saber o que fazer, nem comigo, nem com a flor. Essa sensação… Eu acho que ela nunca mais saiu de mim.
E então eu lembro do olhar das outras mães, quando começaram a perceber que eu sobrei. Elas olhavam para mim e em volta com um misto de pena, censura, comoção… Não sei. “Cadê a Suely?!” disse uma delas.
E então eu não vejo mais nada porque tudo fica borrado. Eram meus olhos, cheios d’água. Eu lembro do pano fechando de volta. E da professora largando a própria filha (que era minha colega) para vir me resgatar. Lembro dela me puxando de lado, pela cintura, e lembro de não querer ir com ela. Não querer sair do palco.
Lembro de pensar assim: Se eu sair daqui, como é que minha mãe vai me achar?!
Ela não acharia. De modo algum. Ela não foi.
Éramos em 27.
Ela foi a única que faltou.
Não, por favor.
Não solte a minha mão agora.
Nem para enxugar uma lágrima. Não é para tanto. Eu não queria ser piegas, juro. Só preciso descrever como foi. E esse é só o primeiro lance, lembra?!
Vem, que tem outros dois:
Neste segundo, preciso dizer: há mentiras que nos protegem. Tanto que escolhemos acreditar nelas. A desse dia foi assim: minha mãe conta até hoje que a culpa dela não ter aparecido foi inteira e completamente minha.
Ela diz que eu esqueci de entregar o bilhete que avisava sobre a apresentação. E que ela o encontrou só quando foi lavar a minha mochila. Mas daí já era tarde demais. Faltava pouco, bem pouco, para o horário programado. Não daria tempo dela chegar. Não tínhamos carro. Além disso, morávamos a quase um quilômetro e meio da escola, então…
Eu precisei ter uma filha. Eu precisei que ela chegasse aos 4 anos para entender, para aceitar, para perceber que era mentira. Crianças de 4 anos não entregam bilhetes. Mães e pais olham a agenda. Mochilas não são lavadas em maio. E depois, se minha mochila ficou em casa, com o que eu fui à escola?!
Eu precisei de muitas madrugadas em claro para responder essas questões. Para entender o que hoje parece óbvio para mim: que ela estava mentindo. Afinal, minha mãe sempre detestou sair de casa. Sempre achou uma besteira qualquer tipo de apresentação ou homenagem. Sempre tratou como lixo todo cartão, presente ou lembrança que eu fiz nos tempos de escola.
Mas ela não só mentiu para mim, como também repetiu essa história para a professora, para as outras mães, para o meu pai, quando ele voltou de viagem. E eu, mesmo depois de grande, preferi acreditar na mentira do que encarar a verdade.
Afinal, mãe é amor, lembra? Por isso, eu preferi aceitar que era um filho péssimo, irresponsável, a imaginar que ela seria capaz de não ir de propósito e ainda colocar a culpa em mim. Que tipo de mãe faria isso?! Não existe amor maior, lembra?
Mas ainda não chegamos ao fundo de mim.
Ainda dá pé por aqui. Há um último lance de escadas até o chão.
Os outros dois eu perdoo. O que vem agora não. Porque é sempre mais fácil perdoar aos outros do que a nós mesmos.
Vamos descer?!
Acaba logo, eu prometo:
No dia em que ela não foi à homenagem, a aula acabou mais cedo. Eu lembro de ter ficado por lá, meio choroso, agarrado à perna da profe Marli. E lembro - é engraçado até - da filha dela, vestida de vermelho e branco, cabelo preso no alto, me olhando com raiva, da outra perna, por ser a única a ter que repartir a mãe, até nesse dia...
Todos foram se despedindo e eu fiquei ainda de olho na porta.
Quem sabe ela não viria?!
Não veio, claro.
E eu já disse, o resto eu perdoo, mas não o que fiz depois.
Eu não sei o que a profe me disse. Se foi dela a ideia, ou não.
Olhando a minha filha hoje, suas invencionices, seus esquemas e surpresinhas, acho que a ideia foi minha mesmo… E isso é o que me arrebenta.
Eu fui para casa naquele dia, sozinho e a pé, como sempre (aos 4 anos, por quase um quilômetro e meio!), com os dois bracinhos para trás, segurando rosa nas mãos. Era meu jeitinho torto de fazer uma surpresa. Porque, na minha cabeça, talvez ela estivesse ainda no caminho para a escola. E eu não queria que ela visse a rosa antes do tempo.
Eu lembro da dor nos braços. Eu lembro de revesar um pouco, deixar um nas costas (sobre a mochila!) enquanto sacudia o outro. Eu lembro da dona da padaria perguntando o que eu estava fazendo e do orgulho na voz com que respondi: “Vou fazer uma surpresa pra mãe!”.
Eu lembro de sentir mais dor conforme ia chegando perto de casa.
Talvez fosse o tempo que eu levei, talvez a desesperança: ela não estava indo.
Por quê?!
Eu lembro de ficar na ponta dos pés para abrir o portão, lembro de cuidar para manter uma mão ainda escondida, com a rosa, coitada, já meio murcha e despetalada, mas escondida.
E eu lembro, sobretudo, de lhe entregar a rosa todo feliz quando ela abriu a porta. E do abraço que lhe dei, como se aquele abraço pudesse apagar tudo, tudo. Curar tudo, tudo. Porque, afinal, era um abraço de mãe, finalmente. Da minha mãe!
E essa inocência, mesmo vinda do meu eu de 4 anos, eu não perdoo. Porque foi ela quem me fez sofrer, todo tempo depois, achando que o problema era eu. O filho ruim, o irresponsável, desde o começo, o filho imperfeito e ingrato. Porque mãe, mãe é perfeita. Mãe ama sempre. E para sempre. Mãe só tem uma…
“O bebê precisa ser capaz de sentir que sua mãe é boa, que sua mãe é confiável. O bebê não pode se permitir odiar a mãe, porque depende dela para sobreviver. Mas quando a mãe falha em ser boa o suficiente, quando a mãe não é confiável, quando a mãe não atende às necessidades do bebê, o bebê pode internalizar o ódio e desenvolver um senso de culpa e autodesprezo”.
{D.W. Winnicott, em "O Brincar e a Realidade"}
E agora sim.
Agora sim você pode soltar a minha mão.
Obrigado por ter vindo comigo até aqui.
Agora, você pode subir de volta, degrau por degrau. Lance por lance. A saída é sempre mais fácil de achar, basta seguir a luz.
Quanto a mim, vou ficar por aqui.
De onde nunca saí, eu acho.
💔 Um post cirúrgico sobre a fúria narcisista, para lembrar que nem toda mãe...
🕳 E um sobre a dívida eterna dos filhos.
💬 Esta querida falando sobre o poder das palavras nas famílias merece seu like.
🏚 VOCÊ é minha casa! Uma tirinha sobre o que resta, no fim.
🏗 Uma ilustração sobre nosso trabalho aqui.
👀 E para desanuviar, esse vídeo sensacional!
4. Ou, ainda, enviar um pix de qualquer valor para: vinicius.linne@gmail.com.
Na semana que vem, falaremos de escrita, tá?!
Não perca! 🧡
"Por que ela não me amou?"
Difícil abraçar a dor alheia.. ainda mais esta, imagino o tamanho do estrago e nada justifica esses maus tratos. Mas se há uma esperança de ressignificar a dor é criar novos laços com muito afeto e carinho com a sua filha. Essa canonização das mães não é bom pra ninguém, pq elas erram, erram muito. Algumas muuuito mais, outras menos, mas são humanas imperfeitas e querendo ou não, causam dor. A minha mãe não foi nem perto da sua, mas errou também, causou traumas e hoje eu vejo que ela é uma pessoa que gerou outra pessoa. Nada mais. Ela e uma pessoa e pessoa sao imperfeitas, por vezes ruins, egoistas...Essa perfeição imaculada não existe, infelizmente. Esse amor imensurável automático também não. (É triste, mas precisamos normalizar isto). A gente só aprende a enxergar as coisas assim quando tudo racha ao nosso redor. A culpa não foi tua, com certeza não. Só de ler meu coração doeu. Porem, ao mesmo tempo, não acredite que as mães alheias por terem ido, são perfeitas. Com certeza não.
Fique bem, tenta colar teu coração pra emanar amor a sua filha. 💞
Sem palavras para expressar o meu sentimento apos ler o seu texto.
Que o nosso acolhimento atraves das reacoes aos seus texto e ao seu perfil aquecam o seu coracao e tragam um pouquinho de alento e calmaria por mostrar que neste mundo existem pessoas que valorizam MUITO quem voce e'.