“Lá você vai encontrar a minha querência. O lugar que eu amei. Onde os meus sonhos emagreceram. Meu povoado, levantado sobre a planície. Cheio de árvores e de folhas, como um cofre onde guardamos nossas memórias. Você vai sentir que ali a gente gostaria de viver para a eternidade. O amanhecer; a manhã; o meio-dia e a noite, sempre os mesmos; mas com a diferença do ar. Lá, onde o ar muda a cor das coisas; onde a vida se ventila como se fosse um murmúrio; como se fosse um puro murmúrio da vida...”
{Juan Rulfo, em ‘Pedro Páramo’}
Um dia seremos só murmúrios.
Seremos ecos.
Vagaremos na noite eterna, em busca um do outro.
E então, eu sei, não haverá homem importante. Nem mulher com razão.
Haverá só a busca faminta e desesperada pelos momentos em que fomos amados.
Haverá as noites de verão em que nos escondíamos e nos procurávamos atrás da pitangueira em flor, esperando seu pai entrar em casa para que a noite fosse nossa.
É isso que não entendem aqui.
É isso que não veem os homens importantes, bêbados de pequenos poderes.
Eles não veem que o Curtume no centro da cidade, demolindo suas próprias partes, é um monumento à brevidade das coisas.
Sobre Tapera, quem não conhece precisa saber disso: a história desta cidade se funde à história deste curtume. Tudo crescendo em torno dele, por anos e anos. Os empregados povoando os arredores, os nomes dos donos virando nome de rua, placa de inauguração, homenagem.
Quantas vezes disseram, quantas eu mesmo ouvi: sem o Curtume, Tapera quebra.
Pois quebrou a empresa. Duas vezes até. Eu mesmo trabalhei nela, arquivando documentos que precisavam existir por 200 anos, notas fiscais de ácidos e produtos químicos para se curtir o couro. Hoje, está sem teto nosso arquivo morto. Mortas as notas, servindo de ninho aos ratos. Ratos radioativos, envenenados de cromo e mercúrio, sem dúvida.
E o Curtume ali, um monumento à inutilidade da vida, dos nomes importantes, dos negócios irredutíveis que se reduziram a um prédio que cai. Tudo passa, mas eles não entendem. Passamos nós, inclusive. Eles também.
Um dia, seremos só ecos - me repito. Ecoo aqui.
Um dia, seremos murmúrios por essas esquinas e não procuraremos placas com nossos nomes. Não nos importarão os títulos, mas as esquinas em que nos esperávamos para nos encontrar.
Procuraremos a boca um do outro, na escuridão que fará.
Procuraremos nossos dedos para entrelaçar.
Passearemos juntos, desviando de sapos e (outras) assombrações.
Lembraremos do que costumava nos fazer rir e da alvorada festiva que houve na cidade na manhã seguinte à nossa primeira vez.
E haverá um momento em que nos daremos conta de que tudo aquilo — a festa, a alvorada, o cheiro da terra — era só um ensaio. Um prelúdio para a despedida que viria, lenta e implacável, como vem a chuva depois de dias de calor. Porque, no fundo, a vida inteira é isso: uma preparação para partir, para ser esquecido.
E quando as ruas forem engolidas pela poeira, quando os muros desmoronarem como o Curtume, estaremos aqui, entre as frestas, ocupando cada canto, cada lembrança que o tempo não puder varrer de uma vez. Nós, os ecos. Não teremos mais rosto nem corpo, mas seremos presença. Vagaremos pelas calçadas rachadas, acompanhando o tempo que, implacável, vai levando consigo tudo o que julgamos permanente.
Seremos sussurros nas madrugadas de vento. Seremos o barulho suave da pitangueira balançando suas últimas flores. E você ainda estará lá, em algum lugar, procurando o que restou de nós dois. Talvez encontre. Talvez se perca, como nos perdemos tantas vezes, achando que o futuro nos guardaria para sempre.
Mas o futuro, esse ingrato, não guarda ninguém. Só o passado, e mesmo ele é traiçoeiro, escorrega entre os dedos. E, no entanto, é o passado que nos sustenta. São aquelas noites, a pitangueira, o silêncio cúmplice, que vão nos manter juntos quando tudo o mais for esquecido.
É a nossa história que nos faz viver.
Porque no fim — e estamos sempre perto dele — não há lembrança que valha mais que um murmúrio compartilhado. Um eco que, mesmo distante, nos transforma - a cada noite - em um só.
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Bombou no Insta esta semana:
Que belíssimo texto, Vini!
Na primeira frase da citação veio a mente Pedro Páramo.
Quando cheguei nos créditos, tomei um susto.
Esse é um dos livros mais marcantes que já li na vida e o filme da Netflix é uma ótima adaptação. Conseguiram passar toda a estranheza que Juan Rulfo escreve.
Um beijo.