“O futuro é imenso demais para que ela imagine como será. Um dia ele vai chegar, e pronto.”
{Annie Ernaux, em ‘Os Anos’}
Convidei meu eu de 13 anos para um café.
E ele não apareceu, lógico.
Mas eu já sabia que ele não iria.
Em primeiro lugar, porque ela jamais me deixaria sair.
Para minha mãe, meu eu de 13 anos era propriedade dela. Portanto, as únicas coisas que eu podia fazer eram aquelas que diziam respeito a ela. Servir sua água gelada, comprar seu cigarro, pintar suas unhas de esmalte Rebu, fazer bonito em frente aos parentes quando eles vinham... Qualquer coisa que dissesse respeito a mim: sair com algum amigo, levar alguém lá em casa, ou até passar a tarde lendo, era totalmente proibido.
Eu era dela.
Para servi-la e mimá-la.
Como consequência, passei minha adolescência quase toda trancado no quarto. Ali era meu último refúgio. Um limiar triste e solitário, entre estar de prontidão, sempre capaz de servi-la, e me resguardar um pouco dela, deixar que houvesse um pouco de vida para mim, algum espaço em que eu pudesse existir sem ser chamado por ela de gordo demais, feio demais, com espinhas demais.
Não, eu não iria a um café naquele tempo.
Aos 13 anos, eu nem achava que merecia muito viver.
De tanto ouvir o que ela dizia, eu acreditava.
Acreditava que ninguém gostaria de mim. Acreditava que ninguém me chamaria de verdade para um café, que seria só uma desculpa para me humilhar. Acreditava que um café não seria o meu lugar. Não seria para gente como eu, feia, e, ainda por cima, sem dinheiro nem para uma água da bica.
Aos 13 anos, se recebesse um convite para um café, eu ficaria trancado no quarto, vendo a noite chegar lá fora, tentando me convencer de que eu nem gostava de café tanto assim… Que ficar em casa era uma escolha minha, uma opção, uma preferência pela solidão, sempre melhor do que ver outras pessoas.
Aos 13 anos, para manter algum tipo de orgulho, de senso de direção, de sanidade, eu desdenharia de todos os cafés, de todos os encontros, de qualquer possibilidade de ser acolhido, abraçado, compreendido. Para poupar a minha pele purulenta de acne, eu tentaria me convencer de que escolhia a distância, a impossibilidade, o afastamento.
Mentira.
Eu só fazia isso para não perceber o quanto era tudo triste e solitário em volta.
Hoje eu sei.
E é por saber que destranco a porta do quarto em que eu cresci e entro nele, sentindo seu cheiro de lugar fechado, enquanto olho para a bagunça de roupas e tralhas que ela fez ali depois que saí de casa.
Olho para as minhas coisas sobre a cômoda, as paredes vazias, os duendes de louça, os livros enchendo todas as gavetas. Olho para o espelho, o mesmo espelho em que eu me olhava aos 13 anos, criticando tudo, e penso:
Esse é meu melhor movimento. Não adiantaria eu me chamar para um café. Melhor seria entrar nesse lugar, invadir, arrombar, derrubar a porta a chutes, se preciso fosse, e abraçar, finalmente, aquele menino que fui.
Aquele menino que tentava ser adulto, maduro, autossuficiente, mas que não passava de uma criança sem colo. Eu queria abraçar tanto meu eu de 13 anos, beijar seu rosto sempre vermelho e dizer que ele merecia sim ser amado.
Que ele, aliás, seria muito amado ainda, principalmente por ele mesmo.
Ao entrar nesse espaço de lembranças amargas, onde a alma de um menino já parecia envelhecida pela dureza do olhar alheio, descubro que, aos poucos, estou apaziguando a minha própria dor.
Não há mais espaço para o desprezo que ele guardava para si mesmo, nem para o toque gélido da indiferença que ele acreditava ser proteção. Hoje, posso olhar para ele e ver o ordenamento do caos, a beleza no que antes parecia impróprio, uma espécie de redenção do orgulho ferido.
Eu queria que, aos 13 anos, eu fosse capaz de enxergar o que hoje vejo – que ele não precisava fechar portas, nem se convencer de que a solidão era preferível. Afinal, é preciso mais do que coragem para aceitar o acolhimento da própria pele diante dos monstros reais e imaginários que são criados dentro de nós.
Ao abraçar aquele menino, eu sentiria o alívio profundo de reafirmar que há amor onde antes existiam apenas buracos. Que ele, finalmente, seria capaz de se sentir digno – não porque eu digo, mas porque agora sabe que, ao contrário de tudo o que ouviu, ele sempre foi suficiente.
Eu queria dizer a ele que o que nossa mãe tem é uma condição psiquiátrica.
Não é culpa dele. Nunca foi.
E, assim, o que antes parecia um espaço de solidão agora é o lugar onde encontro a força para me curar. Não é mais um local de vergonha ou abandono, mas um ponto de encontro entre o que fui e o que posso ser.
Olho meus olhos no espelho, sem medo, ou vergonha, ou dor. Sorrio pelo que aprendemos e me lembro, então, de uma noite há muito tempo, em que fiz o mesmo, me olhei no espelho e vi um reflexo diferente do meu. Na época, fechei as abas do espelho que formavam ângulos e me refletiam multiplicado ali, apavorado. Hoje, penso que aquele reflexo podia ser eu mesmo, tantos anos depois, pronto para a acolhida.
Então, enquanto deixo o silêncio do antigo quarto me envolver, percebo que aquele menino de 13 anos – tão solitário, tão resignado – ainda pulsa em mim, clamando por um afago, por um reconhecimento que jamais veio de fora.
Mas hoje, diante do espelho manchado pelo tempo, não há mais espaço para o medo de ser exposto, para a vergonha que se alimentava de cada recusa em sair para um café.
Em vez disso, há a escolha por abraçá-lo com a intensidade de quem sabe que a verdadeira coragem reside em se aceitar por inteiro, com todas as suas cicatrizes e sonhos inacabados.
Cada objeto esquecido, cada parede desgastada, parece sussurrar que a liberdade não está em fugir, mas em se reencontrar nos recantos da própria memória – num gesto silencioso de amor próprio que, finalmente, torna-se possível.
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🚬 Estou viciado no clima desse perfil aqui.
🦋 Posso passar horas vendo vídeos assim. Alguma coisa me prende muito neles. Algo sobre a inocência de quem vive aquele momento, a inevitabilidade do que virá a seguir, a quebra da expectativa….
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