“O corpo é a única casa que nunca podemos deixar, a única que nunca podemos abandonar. É nossa prisão e nossa liberdade, nossa fonte de prazer e dor. Nós o desejamos, mas também o tememos, porque sabemos que um dia ele nos trairá. O corpo é uma maravilha da natureza, um milagre de complexidade e perfeição. Mas também é um fardo pesado, uma responsabilidade esmagadora. […] É uma ironia cruel que a coisa que mais precisamos para sobreviver - nosso próprio corpo - possa ser ao mesmo tempo nossa maior fraqueza”.
{Jeanette Winterson, em “Inscrito no corpo”}
Oi.
Você sabe quantas vezes por hora precisamos engolir a saliva?!
É muito provável que não. Trata-se de um reflexo, um movimento autômato, algo de que o corpo dá conta por si mesmo. Certo?!
Certo! A menos, é claro, que você não consiga fazer isso sem sentir dor. Muita dor. Nesse caso, você pode descobrir, por exemplo, que são mais ou menos 35 vezes por hora, enquanto se está acordado, e cerca de seis vezes por hora quando se está dormindo.
Pois é. Produzimos de 700ml a 1,5l de saliva por dia, o que totaliza cerca de 600 deglutições. Isso considerando uma média de sono de 8h, claro. O que eu não tive. Por três dias.
Neste fim de semana, fui parar no hospital por conta de uma amigdalite resistente ao tratamento com antibiótico. Minha garganta estava tão inchada, mas tão inchada, que precisei fazer uma medicação de urgência para que ela não obstruísse a glote e me impedisse de respirar.
Mas nada disso me incomodou tanto quanto ter que engolir a saliva. Um ato simples, impensado. Básico. Mas que pode se tornar uma tortura, especialmente quando repetido mais de 1.800 vezes. Socorro!
O corpo é fantástico quando se pensa sobre ele, não é?! Tenho certeza de que do início do texto até aqui, você passou a prestar atenção na própria saliva e agora mal sabe o que fazer com ela.
Quanta saliva se engole mesmo? Assim está bom ou espero um pouco mais? Eu sempre salivo tanto assim? É verdade que pensar em limões faz juntar mais água na boca? Eu, hein?!
Somos todos assim. Basta colocarmos o foco em alguma função biológica e automática para que ela se desregule inteira; como uma criança, numa peça de escola, que vendo os pais na plateia perde sua fala.
“A medida do amor é a perda.”
{Jeanette Winterson, em “Inscrito no corpo”}
Eu costumo odiar meu corpo e quase tudo que há nele. Vivemos em uma guerra declarada há muito tempo, na qual ele é o oponente, a arma e o campo de batalha. O corpo presente, tão declarado e, ainda assim, insondável, com suas traições todas, suas artimanhas e entranhas, suas traições e desejos, seus constrangimentos e revoltas, seus inchaços e barulhos.
Eu sempre quis me afastar inteiro dele. Ser só meus pensamentos, meus sentimentos, minha escrita, minha filosofia. Ser pura razão, ou pura alma. Não sei. Mas sem esse peso do corpo.
Isso até que ele se revolta. E dói. E acusa o golpe. E me fere de agulha com seus simples litros de saliva. E me mostra, então, o quanto eu sou pequeno, um quase nada, preso nele com todos os meus pensamentos impossíveis.
Não há filosofia, ou escrita, ou arte que resista a uma simples dose de saliva, se juntando na boca. Não quando se tem noção de quanta dor ela trará.
É… A medida do amor é perda. E eu descubro isso bem ligeiro quando fico sem palco, sem corpo, sem fala, sem forma de atuar no mundo.
E daí, nessa falta, amo tudo que há em mim. Minhas dobras, minhas marcas, minhas manchas, minhas cores, meus pelos, meu peso. Amo tudo que me sustenta, que me dá acesso ao toque, ao carinho, ao prazer.
O que me comunica, me apoia, me faz viver, enfim.
Agora, estou curado de novo.
Consigo falar de novo, pensar de novo, escrever de novo e, sobretudo, engolir a saliva sem sentir mais do que um levíssimo desconforto. Super tolerável, que vai desaparecer de todo entre hoje e amanhã.
Ou seja, seria agora o momento de celebrar o corpo e tudo que ele representa. Seria o momento de abandonar as armas, fazer as pazes de vez, abraçar essa coisa linda que é ter onde se viver. Esse companheiro como nunca se viu, que fica até o último instante. Até mesmo depois de termos partido para longe. Ele fica, sem abandonar o navio, que é ele mesmo, no fim.
Seria. Mas a medida do amor é a perda.
Não a presença.
E por isso, ao me olhar no espelho agora, só que o vejo são os cabelos que pareciam menos grisalhos ontem. E percebo que, mesmo sem ter comido nada nos últimos dias, não emagreci tanto quanto deveria…
Olho para o corpo de perto. E já não o reconheço.
Ele passa pelos meus pensamentos atravessados. E já não me cabe.
Já voltamos à luta, parece.
Muito embora eu confesse, baixinho… que sei que estamos do mesmo lado.
🐋 Tolhido pela Igreja, estudado como problema pela medicina, entregue ao prazer - que tem um preço, abandonado por nós mesmos… o corpo é a figura central deste filme aqui. Recomendo demais!
🦢 Ouvir este podcast me fez repensar a relação com meu corpo e o envelhecimento de uma maneira que nem posso dizer.
🐢 “Você é seu próprio lar” nunca foi tão literal.
🦫 No fim, eu quero é estar cada vez melhor, só para ir a Nárnia.
Que incrível, como uma visita ao hospital rendeu questionamentos sobre a saliva, um texto sobre respeito e reconhecimento do corpo, nosso lar… tantas reflexões e entendimento!
Amo suas palavras.