"Não sou escrava dele"
“O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou para mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele.”
{Simone de Beauvoir, em ‘Cartas a Sartre’}
Eu trouxe isso, doutor - o senhor me desculpe, só… está um pouco amassado - mas eu trouxe isso, doutor, porque… ultimamente eu só sei me explicar pelas palavras dos outros mesmo. As minhas já não servem. Já não dizem. Se dissessem, eu conseguiria sair de onde eu estou, doutor. Mas eu não saio. A merda é que eu não saio.
O quê?! Onde eu estou?
Acho que quando é a palavra certa.
Porque é como se eu estivesse sempre preso ao passado. Sempre tentando desatar algum nó, alguma amarra que me impede de ir em frente, sabe?! Mas sem conseguir. Só me enredando mais no caminho. O senhor compreende?!
E eu estudo, eu tento, juro, eu medito, eu pratico o que aprendo.
Mas, de repente, tenho só seis anos, estou sozinho no mundo de novo, enquanto, do outro lado da porta, ela grita sem parar. Ela. É. Minha mãe.
Mas me deixe começar pelo começo, sim?!
Aqui, pelo papel.
“O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou para mim. Provisoriamente”.
Sabe, eu queria ter essa certeza do provisoriamente como tenho do tempo parado.
Porque eu me sinto congelado num mesmo pensamento. Num mesmo estado. E ele invade todo o resto. Tudo que toca. Hoje é segunda, sim, mas isso é só uma palavra. Porque eu sei que na sexta eu ainda estarei pensando as mesmas coisas.
Tendo os mesmos problemas.
Que problemas?! Especialmente de grana, doutor. O senhor não entenderia. Não entenderia nem se eu disse que tudo que minha mãe toca se estraçalha em buracos. Que meu pai morreu de pressão e preocupação, sobre como pagar o banco. E as dívidas, doutor… Todas as dívidas que eram dela agora são minhas. E eu preciso lidar com isso enquanto digo para a minha pequena que este ano não sairemos de férias… Nem nos próximos, provavelmente, mas isso eu não digo.
Enfim, eu não quero falar sobre isso, mas sobre tempo, doutor. Esse tempo que me deixa aqui, porque corre apressado para outro lugar. Esse tempo que me deixa de relógio parado, ponteiros roubados, ampulhetas quebradas. Coisas assim. Não sei.
Sei que não consigo ir para frente.
E era isso o que eu mais queria lá atrás.
“Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro”.
Percebe, doutor?! As ameaças que o futuro encerra. Um futuro encerrado, preso, cheio de ameaças, de armadilhas. Como querer ir para ele, me diga?! Como ter esperança quando o que se espera é tão pouco e tão torto?!
O meu futuro só tem cartas marcadas, doutor, de um baralho viciado, todo mal-ajambrado e pior pintado do meu passado. Somos definitivos, doutor. Cada um de nós. E se o passado é quem define a abertura para o futuro, doutor, estou perdido.
“O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo”.
Olhando assim, parece que eu decidi tão pouco. Tão pouco sobre o que iria me apaixonar, o que eu cultivaria e o que deixaria morrer. Parece que as estações vieram, as intempéries uma após a outra, e tudo que eu fiz foi sobreviver. Foi juntar comida, construir tapumes, remendar telhados, sempre com vistas ao próximo furacão.
Nunca o arco-íris vem, doutor?!
Nessas horas, eu lembro de Amélie Poulain. Isso, o filme. O senhor assistiu?! Pois devia. Há uma cena em que alguém pergunta: “Você acredita em milagres, Amélie?!”. “Hoje não”, ela diz.
Acho tão linda essa fala. Porque apesar da desesperança, ela traz a ideia de que há um ontem e um amanhã. Dois tempos em que ela pôde e pode acreditar em milagres.
Mas o meu tempo é diferente, doutor. É irrealizável, lembra?!
O quê?! Se eu acredito em milagres?!
Ah, faça-me o favor, doutor!
Que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje?
Que espaço eu tenho se escolhi tão pouco?! Era Sartre quem dizia que o homem está condenado a ser livre?! Pois a minha sentença ainda não chegou. E embora os espíritas possam vir a me contradizer: não, eu não escolhi onde nascer.
Nem escolhi ser adotado, nem ser quebrado, nem ser trancado num quarto escuro para lidar com pesos além dos meus, doutor. Eu não escolhi. Não escolhi nem o que estou dizendo hoje, aqui.
Não. Eu não queria esse lamento, sabe?! Eu não queria quase chorar (de novo!). Eu queria fazer uma fala tão bonita, doutor… Como era mesmo?!…
Ah, lembrei. Era algo sobre as cenas do passado que eu revisito às vezes, meus eus e suas sensações bonitas. Algo sobre o cheiro das bolinhas de natal de vidro, quando eu tinha seis anos. A mistura de inveja e expectativa de que o mesmo acontecesse comigo quando meu melhor amigo começou a namorar. As tardes em que descobri Clarice.
Não sei mais o quê. Eram coisas assim.
Era para ser bonito o encontro de hoje, doutor. Esperançoso, até.
Porque eu queria me convencer de que haveria um verão em algum momento. Haveria, de novo, algum esquecimento, alguma paz, algum… não sei… vazio?! Por que o senhor acha que eu evitei a palavra felicidade, doutor? O quê?! Esquecimento, paz, vazio… Foi isso que eu disse?! Nossa. Parece mórbido, doutor. Me desculpe, então.
Não é como se eu fosse pular da ponte ao sair daqui, né?! Por favor...
Eu só estava querendo dizer que, agora, não consigo ir além disso. Nem para desejar, doutor. Veja bem. Até meu desejo é denso, é pouco, está fechado para conserto. Isso passa, sim. Eu sei que passa. Na teoria, eu sei. Mas hoje não parece que vai passar. E é isso que me congela no tempo.
Como assim última frase?!
Ah, da citação. Não. Eu não vou ler a última frase.
Não, doutor. Eu me recuso a repeti-la aqui. Leia o senhor se quiser.
Hoje, eu não compro a ideia de me libertar. Por enquanto, sou escravo sim.
De quem?! Não sei doutor! Ou sei e não admito. Então não digo.
Semana que vem, talvez.
Até lá, quem sabe eu consiga dizer o que pretendia dizer antes, até.
Antes de começar a falar essas bobagens de tempo e talz.
Eu sei, doutor. Bobagens é jeito de dizer.
Enfim…
Talvez seja isso, doutor, o tempo. Um caminho torto, enrolado, que volta e dá voltas - como eu aqui -, enquanto sigo tropeçando nas mesmas pedras. Sem aprender.
Mas se o passado me define e o futuro me ameaça, quem sabe o presente, esse instante de conversa, não seja o único lugar onde posso existir de fato?!
Talvez eu ainda encontre a coragem para acreditar que há mais por vir.
Semana que vem, talvez, doutor.
Aliás, mesmo horário?!
Até lá, então.
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💀 Hoje, acho que sou um deles.
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