"A Srª Jorge B. Xavier simplesmente não saberia dizer como entrara. Por algum portão principal não fora. Pareceu-lhe vagamente sonhadora, ter entrado por uma espécie de estreita abertura em meio a escombros de construção, como se tivesse entrado de esguelha por um buraco feito só para ela. O fato é que quando viu já estava dentro.
E quando viu percebeu que estava muito, muito dentro. […] Então continuou automaticamente a entrar pelos corredores que sempre davam para outros corredores. […]
A senhora já desistira da conferência, que no fundo pouco lhe importava. Contanto que saísse daquele emaranhado de caminhos sem fim. Não haveria porta de saída? Então sentiu como se estivesse dentro dum elevador enguiçado entre um andar e outro. Não haveria porta de saída?"
{Clarice Lispector, em 'A procura de uma dignidade'}
Se tem um conto da Clarice que eu DETESTO é este: A procura de uma dignidade.
Basta eu cair nele para começar a ter ataques de claustrofobia. Logo eu, que não me importo com lugares fechados, que inclusive até prefiro, se puder escolher…
Mas nesse conto não.
A procura da Senhora Jorge B. Xavier por uma saída me perturba e angustia.
É assim: ela começa presa a este nome já, do marido. Em seguida, à sua classe e sua condição de intelectual. É para permanecer assim que pretende ir a uma conferência. Ela não sabe direito do que se trata, nem onde é. Mas sabe que pega bem comparecer a eventos assim, então vai. Vai e a prisão do status quo ergue suas barras em volta dela.
Por uma confusão de ideias, a Senhora Jorge B. Xavier vai parar nas entranhas do Maracanã e fica presa lá. Sem achar nem a conferência, nem a porta de saída. Cada corredor leva a outro corredor, como num labirinto. Cada prisão sua dá em outra prisão, como numa série daquelas bonecas russas, sabe quais?! Então.
Nem das palavras ela consegue sair.
Como Clarice não conseguia.
Nem eu.
“Ela quis explicar que sua vida era assim mesmo, mas nem sequer sabia o que queria dizer com o ‘assim mesmo’ nem com ‘sua vida’, por isso nada respondeu.
{Clarice Lispector, em 'A procura de uma dignidade'}
Na prisão do silêncio está a prisão do calor estranho que faz, da idade que subitamente lhe vem, da loucura da qual lhe acusam, da dor e da inutilidade de tudo: conferência, estádio, status quo.
De repente, a pergunta magna: Mas afinal: que faço eu aqui?
Quando (ufa!) sai do Maracanã, pega um táxi. Finalmente um meio conhecido. Mas para ir aonde? Qual o endereço mesmo? A cidade, suas ruas e placas, suas gentes e perguntas, é outra prisão. Isso não tem fim, meu bom Deus?!
Não.
Quando ela chega onde deveria estar desde o começo, o anticlímax:
“Então de repente reconheceu as pessoas que procurava e que se achavam na calçada defronte duma casa grande. Era porém como se a finalidade fosse chegar e não a de ouvir a palestra que a essa hora estava totalmente esquecida, pois a Srª Xavier se perdera do seu objetivo. E não sabia em nome de que caminhara tanto. Então viu que se cansara para além das próprias forças e quis ir embora, a conferência era um pesadelo”.
{Clarice Lispector, em 'A procura de uma dignidade'}
Tudo por nada.
E eu? Eu me perdi aqui também.
Porque não estou a falar do conto este tempo todo.
Não estou aqui a pensar na ilustríssima Senhora Jorge B Ponto Xavier.
Nem na Clarice.
Estou pensando em mim e na minha própria vida.
Por isso este conto me perturba. Porque, como elas, eu também não sei por qual porta entrei.
Se você ler a citação de hoje novamente, pensando que é sobre a vida e não sobre o Maracanã, vai entender o que eu digo. De repente a gente olha em volta e não sabe bem como chegou até aqui. Tudo parece estranho e sem sentido. As escolhas tomadas nem pareceram escolhas na época. Eram só o corredor que precisava ser percorrido. Era só a conferência que a gente procurava sem parar e sem saber por que queria ir.
De repente a vida é esta. O seu emprego é este. Seus amigos estão postos. Seu parceiro ou parceira está ao seu lado no sofá e então você se pergunta quando foi que escolheu tudo isso. Quando, conscientemente, quis esta vida, exatamente esta para você. Com uma mãe desequilibrada, um emprego sem perspectiva, uma mulher que não lhe deixa mais sair de casa nem para caminhar.
E se você se perguntar por tempo suficiente, com força suficiente, de repente você estará como a Senhora Jorge B. Xavier: perguntando onde diabos está a porta de saída.
Sim, porque as escolhas não são como na televisão. Não são claras, não vêm na cena final com direito a tela congelando e música de suspense. Elas acontecem no meio do caminho, tanto que nem notamos. Elas dependem dos outros, das estrelas, do destino, eu não sei.
Só sei que eu não escolhi ser esse que sou hoje. E de quem me ressinto um pouco, inclusive. Hoje eu estou como ela, perguntando se existe uma porta de saída. Se existe um refúgio, um lugar que seja meu de verdade.
E existe.
Quando a vida nos aperta de todos os lados, a única saída é para dentro.
É pelo encontro consigo mesma, sem dor e sem culpa, que a protagonista do conto acha um meio de escapar. É pelo seu desejo, pelo seu olhar no espelho, pelo seu canto revelador, de sereia condenada, que ela assume quem é: um animal anônimo. Um ser que deseja.
É no encontro que achamos a saída. É nesse encarar a realidade, mergulhar nos próprios desejos, verificar entre as vontades vagas quais ainda fazem sentido e quais não mais.
Feito isso, vem o mais difícil: agir.
Sim, porque na maior parte do tempo, temos mais a sensação de estarmos presos do que a prisão em si. Sair dela é fácil, encarar as consequências nem sempre. Mas se tem uma coisa que eu entendo quando olho bem para mim é isto: não sou bicho que se possa prender.
“Dentro de mim tem um cavalo selvagem, correndo solto pela arena. Se eu prendo o cavalo, eu prendo junto com ele a minha motivação, a minha energia, a minha intensidade, o meu desejo, a minha vontade de me entregar para as coisas”.
{Natália Sousa, no podcast ‘Para dar nome às coisas’}
E se eu perco isso: a motivação, a energia, a intensidade, o desejo, a vontade… então não me sobra nada daquilo que me faz ser quem sou.
É isso!
Saí do conto, até que enfim.
Encontrei a porta.
Agora, só me falta admitir que estive com a chave na mão o tempo todo. Que ainda estou, aliás, enquanto espio pelo buraco da fechadura e ainda sussurro: “Tem que haver uma saííííída!”.
🧱 Ouvir este conto pela voz da saudosa Aracy Balabanian é uma experiência e tanto.
🛸 Você sabe quantas pessoas estão, neste exato momento, presas(?) lá fora, no espaço?
🐶 Arte, conceito e poesia se encontram aqui.
🕸 O que você vê enquanto desenha? Labirintos, mandalas, flores bonitas?
🪆 Quero morar num quadro da Janaina Mello.
4. Enviar um pix de qualquer valor para: vinicius.linne@gmail.com. Quem sabe assim eu não junto dinheiro suficiente para fugir para o exterior, hein?! 🛫
Excelente reflexão, Linné! Eu só acrescentaria que o Destino pode nos trazer reviravoltas positivas, mesmo quando não conseguimos ver saídas... Adelante!!