“Havia uma pessoa dentro de mim, uma parte de mim — seja lá como queiram descrevê-la — tão ferida que estava preparada para me ver morta e assim encontrar paz. Aquela parte de mim, que vivia sozinha, escondida em um covil sujo e abandonado, sempre se mostrava capaz de organizar um ataque contra o resto do território. Meus violentos acessos de raiva, meu comportamento autodestrutivo, minha necessidade de destruir o amor e a confiança, da mesma forma que o amor e a confiança tinham sido destruídos para mim. Minha imprudência sexual, que não era uma liberação. O fato de que eu não dava valor a mim mesma. Eu estava sempre pronta a pular do telhado da minha própria vida. Não haveria romance nisso? Não seria o espírito criador livre de todos os limites?
Não.
A criação está do lado da saúde — não é o que nos torna loucos; é a faculdade que, em nós, tenta nos salvar da loucura.”
{Jeanette Winterson, em ‘Por que ser feliz quando se pode ser normal?’}
Foi Clarice quem disse que nosso primeiro instinto, ainda bebês, é o de pertencer.
É o desejo vital de nos sentirmos queridos, acolhidos, escolhidos e amados.
Na biologia, a teoria do apego de John Bowlby diz que esse vínculo não é apenas emocional, mas uma necessidade instintiva para a sobrevivência, na qual o contato pele a pele, o olhar entre mãe e bebê, são capazes de liberar ocitocina, o chamado "hormônio do amor", fortalecendo a ligação entre eles.
Freud, na psicanálise, sugeriu que essa relação inicial é o primeiro espelho do inconsciente, um espaço onde o bebê projeta suas experiências de desejo e segurança.
Já Winnicott fala da "mãe suficientemente boa", que acolhe e contém o filho, permitindo o desenvolvimento saudável do eu.
Mas o que acontece quando esse primeiro vínculo explode?
Jeanette Winterson escreveu sobre isso em sua biografia:
“Crianças adotadas inventam sua própria história, porque precisam ser assim; há uma ausência, um vazio, um ponto de interrogação já no comecinho da vida. Uma parte importante de nossa história desapareceu violentamente, como uma bomba no útero”.
{Jeanette Winterson, em ‘Por que ser feliz quando se pode ser normal?’}
A ocitocina não veio. O espelho estilhaçou. A mãe suficientemente boa não esteve lá. Como fica, então, este eu que nasce? Como ele fica, ainda, quando é entregue à madrasta má dos contos de bruxas, dos quais fada alguma chegaria nem perto?!
É isso que acontece com Jeanette. Sua mãe adotiva é uma figura de complexidade brutal, ao mesmo tempo imponente e trágica. Ela carrega uma força emocional devastadora, marcada pela repressão e pela frustração de uma vida não vivida. Suas palavras e ações são como cacos cortantes, sempre prontas a machucar, a ferir, como se estivesse perpetuamente em guerra com o mundo e, principalmente, com a filha.
Como se sobrevive de explosão em explosão?
Como se deita numa cama de cacos?
Como se aprende a amar sozinha?
O que essa mãe comete contra a filha vai muito além do abandono físico ou das punições severas; é uma negação emocional, uma recusa em enxergar a pequena Jeanette como um ser com desejos próprios, com um coração que anseia por carinho e validação. Para ela, o amor é uma fraqueza, e mostrar qualquer tipo de afeto é uma derrota. Você consegue imaginar ter uma mãe assim?!
Eu sim.
Essa mãe castiga Jeanette, tanto com silêncio quanto com palavras, porque acredita que, assim, estará criando nela uma casca dura, capaz de protegê-la do mundo. No fundo, a mãe é trágica porque nunca aprendeu a lidar com suas próprias feridas, nunca encontrou redenção, e em sua infelicidade, tornou-se uma prisioneira de si mesma. Ao cometer suas crueldades contra a filha, ela perpetua o ciclo de dor que a define, talvez sem perceber que, ao fazê-lo, condena a si própria à mesma solidão que a atormenta.
Como escapar desse ciclo, como rompê-lo?
Eu sei.
Eu sei porque quando leio o livro de Jeanette, não encontro palavras.
Encontro minhas dores, meus suores e lágrimas.
Encontro nele a minha própria história. Da explosão à queda. Como naqueles vídeos de demolição, sabe?! Primeiro tudo explode: nossa mãe biológica nos passa adiante, deixando vãos e lacunas impossíveis, estruturais. Depois, as coisas vêm abaixo.
Há 36 anos, minha mãe adotiva procurou um psiquiatra.
Transtorno de Personalidade Narcisista. Traços de esquizofrenia. Psicopatia.
Além do Lexotan, o Dr. lhe entregou um bebê. O filho bastardo que - talvez - ele mesmo tenha feito na empregada da família.
Eu sei como é a solidão.
Eu sei como é não dormir à noite perguntando quem nos colocou ali e porquê.
Eu sei como é querer cantar e levar uma surra por isso.
Eu sei como é alguém fazer da sua missão de vida minar cada demonstração sua de felicidade.
Eu sei como é ver a pessoa que mais deveria te amar nesse mundo sempre, sempre pronta para te destruir.
Eu sei, Jeanette.
Nós dois sabemos.
Mas sabe do que mais?!
Isso também nos ensinou como sobreviver.
“Não havia ninguém para me ajudar, mas T.S. Eliot me ajudou. Portanto, quando as pessoas dizem ‘a poesia é um luxo, uma opção, é para a classe média educada’ ou ‘não deveria ser ensinada nas escolas porque é irrelevante’ ou qualquer das coisas equivocadas e estúpidas que são ditas sobre poesia e o seu lugar em nossas vidas, suspeito que o enunciador de tais palavras sempre teve uma vida bem fácil. Uma vida dura requer uma linguagem dura — e a poesia é isso. É o que a literatura oferece: uma linguagem poderosa o bastante para dizer as coisas tais como elas são.
Não é um lugar onde se esconder. É um lugar onde se encontrar.”
{Jeanette Winterson, em ‘Por que ser feliz quando se pode ser normal?’}
“Meu Deus! Mas com uma mãe assim, como é que você virou gente?”
Foi o que uma amiga me perguntou, depois de ouvir um pouco do que foi crescer lá em casa. E minha primeira reação foi lembrar de Macabéa, vejam só. “Ah, mas eu não acho que sou muita gente”. E com essa citação de Clarice, ficou claro o que me salvou: a Literatura.
Os livros foram meu ponto de encontro.
As poesias foram meu carinho mais sincero e desesperado.
A escrita ouviu meu grito e mudou tudo.
A cada palavra em azul, ela me respondeu.
Até hoje, essa é minha solução e salvação.
Estar aqui, toda semana, é o que me resgata da loucura. É o que me faz elaborar o que aconteceu e colocar as escoras todas que eu preciso para não desmoronar, apesar das explosões, apesar da minha mãe. Apesar de tudo.
Ler Jeanette é um encontro.
Porque ela me faz entender que o normal é ser feliz, contrariando o título - tirado de uma das frases de sua mãe. Normal é ser feliz, normal é estar bem, normal é encontrar uma salvação e compartilhá-la como eu faço aqui. Como ela fez lá.
Normal é sentir amor e explicar o amor, convertendo estilhaços em arte e fazendo da vida o melhor que ela pode ser: poesia.
🎙️ Ser acolhido muda tudo.
🕶 Iniciativa linda. E uma definição de experiência estética.
🦒 Eu pararia antes dos bichos. Mas gostei também.
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(ainda não superei este vídeo! 🥰)
e que poder tem a literatura!
Sempre uma delícia te ler, Vini! Gracias!