"Não é assim que eu sonhava escrever. Os livros sempre foram a janela por onde eu escapava desta mãe que agora, enquanto escrevo com o sangue pingando, me espreita atrás da porta. Desde criança, quando abro um livro não estou mais aqui. Não é uma metáfora para mim. Para mim tudo é literal. Como meus braços bordados pelas cicatrizes de todas as tentativas de me separar do corpo da minha mãe. Para mim nunca houve um cordão umbilical que pudesse ser cortado. Só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser carne da mãe. Cotinuo sem corpo e ela lá fora, com medo que eu vá embora, fingindo desconhecer que não posso partir. Nunca pude. Porque arrasto comigo o corpo dela, que me engolfa e engole".
{Eliane Brum, em ‘Uma/Duas’}
Eu queria fugir desse tema. Juro. Mas como ouvi num podcast que recomendo hoje: “os temas mais difíceis de escrever são, justamente, os mais necessários”.
Então, vamos!
“Você não é todo mundo” é uma frase universalmente atribuída às mães, certo?! Certo. Mas é preciso aplicar a mesma sentença a elas: nem toda mãe é igual.
Nem toda mãe é Mãe, por exemplo.
Acredite em mim, eu tenho duas para saber.
A primeira ajudou a escrever para mim uma história digna de novela mexicana ruim. Ou de série documental excelente da Netflix. Não sei ainda. Sei que é assim: imagine um psiquiatra que engravida a empregada. Até aí nada diferente dos jogos de pressão e poder que formam a nossa sociedade. A complicação da trama começa quando eles todos armam uma adoção ilegal. Vão dar o filho, fazer a criança sumir, apagar a ameaça à reputação do pai, rico, estudado, casado, conservador, homem de bem, defensor de Deus, da pátria, da família, da propriedade e etc.
Mas a quem dariam o bastardinho - vulgo eu?
A uma das pacientes do doutor, é claro! Àquela que não pode engravidar.
A minha segunda mãe entra em ação aqui.
Psicose, paranoia, esquizofrenia, transtorno de personalidade narcisista e um filho, este último graças ao Doutor que deveria tratá-la, mas que insiste em nunca mais vê-la depois da adoção.
É…
Trinta e quatro anos depois, eu ainda tento desmontar o que as duas fizeram. Eu ainda tento, como a protagonista do livro “Uma/Duas”, me desenrolar dos cordões umbilicais e dos nós que tramaram em torno de mim. Nem todo dia consigo.
Mas todo dia das mães eu me exponho, falo do que não deve ser falado, corto por cima das cicatrizes todas para lançar luz, talvez, a mais alguém. Para dar o recado que é título de um dos principais livros sobre as feridas deixadas pelo narcisismo materno: “You're Not Crazy - It's Your Mother” (algo como Você não é louco(a), sua mãe é que é).
Eu demorei muito para entender minha história. Ela foi encoberta com versões e mais versões de mentiras. Eu demorei para entender os transtornos da minha mãe adotiva e o que eles causaram em mim, para compreender que o problema não era eu.
Ainda hoje, acho, não tenho a dimensão do todo. Mas já sei que muita gente pode se sentir assim também. Por isso, escrevo. Por isso peço licença hoje, nesse mês que é tão claustrofóbico para mim, para deixar a arte um pouco de lado e mostrar os bastidores dela.
Afinal, como disse meu xará de Moraes: “pra fazer um samba com beleza/ é preciso um bocado de tristeza”.
🎭 Taryana Rocha é uma psicanalista especializada em Narcisismo Materno. Ver esse vídeo é essencial porque mesmo dentro das psis existe uma série de preconceitos e pré-julgamentos quando os filhos expõem os problemas que enfrentam com suas mães narcisistas. Mas será que você não está idealizando a imagem de uma mãe perfeita?! Nem de longe é isso!
🧊 Esse podcast aqui fala sobre a importância da autoficção, ou seja, da escrita de si mesmo. Por que se expor? Como encarar as consequências? Vale a pena? Descubra ouvindo.
🗣 Depois da intensidade que foi este e-mail para mim, fique com a delicadeza dos traços e da mensagem dessa história. Pode parecer clichê - e talvez seja mesmo - mas ainda importa o que fazemos do que fizeram conosco.
Eu escolho trazer luz para quem ainda está no escuro. E você?!
esse texto foi um abraço doloroso. Um abraço aconchegante em você ☕