“Quando eu fui ferido
Vi tudo mudar
Das verdades
Que eu sabia
Só sobraram restos
Que eu não esqueci
Toda aquela paz
Que eu tinha…
Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado
À meia-noite, à meia luz
Pensando!
Daria tudo, por um modo
De esquecerEu queria tanto
Estar no escuro do meu quarto
À meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo
E nada mais”
{Guilherme Arantes, em ‘Meu mundo e nada mais’}
“Se te baterem, você bate de volta”!
Deve ter sido isso que o jovem Guilherme Arantes ouviu do pai quando se queixou de que os meninos da turma implicavam com ele. O conselho de ser mais violento do que os valentões deu certo, afastou dele as ameças de agressão, mas também fez com que ele perdesse seu mundo interno, sua sensibilidade, sua delicadeza, sua infância, de certo modo.
A partir dali, ele virou homem, seja lá o que isso signifique…
Aliás, o que significa virar homem na nossa sociedade?
É se impor pela força? É embrutecer!? “Adolescência”, a série mais comentada das últimas semanas, parece apontar nesse sentido. Mas antes de chegarmos lá, é interessante saber que essa palavra “adolescência” vem do latim adolescere, que significa, basicamente, crescer.
Crescer é - ou deveria ser - dar-se conta de como o mundo funciona. É sair do conforto da infância, da inocência, da (super)proteção e se deparar com a dureza do real: os espelhos já não mentem, os amigos já não cabem todos no mesmo abraço, os pais já não têm todas as respostas, nem acham bonitinho tudo que a gente faz. Crescer é atravessar a floresta escura da dúvida e da solidão, na qual tudo parece exagerado demais, intenso demais, urgente demais.
E talvez seja por isso que a gente fale da adolescência como se fosse um bicho estranho, uma tempestade que a gente precisa suportar até que passe. Rapidamente, costumamos nos esquecer de que já fomos adolescentes também. Esquecemos do peso de não nos sentirmos suficientes, do medo da rejeição, da raiva de não sermos compreendidos. Esquecemos da vontade de gritar e de sumir ao mesmo tempo. Esquecemos de que crescer dói — mas também pulsa.
Você se lembra da sua primeira grande paixão? Daquela música que parecia contar exatamente a sua história? Da sensação de injustiça quando ninguém ouvia o que você dizia com tanta verdade no peito? Da vontade de mudar o mundo todo - ou pelo menos a própria vida - em uma noite?!
A adolescência não é uma fase a ser vencida. É uma travessia. Um entrelugar onde nos perdemos e encontramos, onde se aprende a lidar com o que não cabe mais na infância, mas ainda não sustenta o peso da vida adulta. É o momento em que o mundo se torna maior — e, ao mesmo tempo, mais confuso. É a hora em que encolhemos (na percepção dos outros, pelo menos) e precisamos lidar com esse fato.
Talvez seja por tudo isso que os adultos se afastem tanto dessa lembrança: porque ela dói. Porque ela revela as partes que a gente precisou esconder para "virar homem", "virar mulher", para caber no que esperavam de nós. Precisamos abrir mão do nosso mundo para caber no mundo real, que é todo alheio.
Mas e se a gente voltasse lá de vez em quando? E se a gente olhasse para os adolescentes com menos julgamento e mais memória?
Se fizermos esse esforço, talvez consigamos não apenas entender melhor essa fase, mas acolhê-la — e, quem sabe, cuidar também do adolescente que ainda vive dentro da gente.
Vamos a um exercício rápido: se você precisasse escolher um objeto para representar sua adolescência, o que escolheria? Para mim, seria uma chave. A chave do meu quarto.
Assim como a bruxa de Rapunzel, minha mãe me queria só para si, protegido e guardado dos “perigos” da rua. Ela não me deixava sair. E se eu atrasasse para voltar da escola ou de uma festa, tudo virava um escândalo, com gritos intermináveis e muito choro. Então, eu precisava ficar em casa, sob seus olhos e críticas.
Para me preservar, meu quarto passou a ser meu refúgio. Meu jeito de criar uma barreira de proteção e conseguir manter um lugar só meu, em que mesmo mudo e mudado, eu pudesse ser eu mesmo ainda.
Nas voltas daquela chave, eu cresci.
Foi ali, entre quatro paredes, que comecei a colecionar silêncios, pensamentos, vontades, planos que eu fazia baixinho, com medo de que alguém os escutasse e dissesse que eles eram demais para mim. No escuro do meu quarto — à meia-noite, à meia luz — eu era o que sobrava de mim. Era o que eu podia ser, longe do peso das expectativas, dos rótulos, das críticas dela.
E foi também ali que descobri a potência de escrever. De me imaginar diferente. De querer mais. De me compreender e de me explicar. Mesmo sem saber exatamente como. Porque a adolescência também é isso: um querer que não se entende, uma pressa sem direção, um excesso de vida ainda sem forma.
Hoje, quando olho para os adolescentes com quem trabalho, tento lembrar disso tudo. Tento não rir de suas dores, não diminuir seus dramas, não dizer que “vai passar”, como quem diz que tanto faz. Tento entender o que pulsa ali dentro — porque pulsa. E pulsa forte. Eles não são todos maus. Só estão perdidos, como cantaria Criolo.
Eles não são “exagerados”. São inteiros. Inteiros na alegria, na tristeza, na fúria, no medo, na coragem. São espelhos do que já fomos, antes da gente se esquecer. Antes da gente ceder, silenciar, endurecer. E são vítimas de um tempo também. Um tempo em que não crescer se tornou meta de vida.
Mas que isso não soe como uma tentativa de justificar o injustificável. O que se vê na série — e fora dela — é, muitas vezes, cruel demais. Violento demais. Desumano. Não dá para passar pano, não dá para romantizar. Nada, absolutamente nada, pode amenizar o sofrimento de quem é alvo da brutalidade, da exclusão, do preconceito, do abuso. A adolescência, por mais turbulenta que seja, não pode servir de álibi para o que fere, para o que machuca de propósito, para o que destrói.
O que eu tento dizer é outra coisa. É que, se quisermos formar adolescentes saudáveis, precisamos, nós, sermos adultos. Adultos de verdade. Inteiros. Presentes. Responsáveis.
Parece simples, mas é uma das tarefas mais difíceis da vida — porque muitos de nós ainda estamos tropeçando na nossa própria travessia. Ainda tentamos curar feridas antigas com curativos rasos. Ainda nos escondemos atrás de discursos prontos, de risos irônicos, de uma suposta maturidade que mais parece cansaço. Ainda reagimos com o mesmo impulso de antes, com o mesmo medo de não sermos levados a sério, com a mesma raiva de não sermos vistos.
A verdade é que muitos adultos nunca saíram da adolescência — e outros tantos fizeram tanta força para esquecê-la que deixaram para trás pedaços importantes de si.
É uma contradição, eu sei. Dizemos que esquecemos, mas carregamos tudo dentro, como quem esconde uma carta no bolso do casaco. Está lá: o ciúme, a insegurança, o desejo de aceitação, o orgulho ferido, a vontade de desafiar. Só mudamos o cenário. Em vez do quarto, agora é o escritório. Em vez da escola, é a reunião. Em vez do grito, é o e-mail passivo-agressivo. Mas o enredo... ah, o enredo é o mesmo. O tom também. O mesmo revirar de olhos, eu sei.
Talvez, por isso tantos adultos reajam a adolescentes com tanta impaciência. Porque eles lembram a versão de nós que ainda não foi cuidada. Que ainda dói. Que ainda pede colo — mesmo que a gente chame isso de "autoridade", "limite", ou “não tenho tempo pra isso”.
Mas aí é que está: crescer, de verdade, não é esquecer. É lembrar com responsabilidade. É lembrar e fazer diferente. É reconhecer que a fase de crescer já passou pra nós — e que agora é hora de sermos o apoio, o chão firme, o abrigo. Não dá mais pra sermos os adolescentes da vez. Eles já têm essa função. O mundo precisa de gente adulta para acompanhá-los com firmeza e afeto, com presença e escuta, com limites e confiança.
Numa sociedade que abomina o envelhecer, precisamos nos lembrar de que estamos nessa fase. Precisamos ser porto. E ser porto é, às vezes, dizer “não”. É chamar pra conversa. É não deixar passar. É apontar o erro e ensinar a reparação. Não pelo grito, não pelo medo, mas pela clareza. Pelo cuidado. Pelo amor que exige. Que chama pra vida. Que não protege da realidade, mas prepara para ela.
Porque educar não é mimar. Não é encobrir. Muito menos terceirizar. É estar junto — mesmo quando o outro parece querer distância. É sustentar o incômodo. É segurar firme, sem sufocar. É ajudar a crescer — inclusive nas partes que ainda doem em nós.
No fundo, talvez a maior lição da adolescência — para quem está nela e para quem já passou — seja essa: a de que a dor precisa ser escutada. E que o amor verdadeiro não é o que evita a dor a todo custo, mas o que se dispõe a atravessá-la junto.
Sejamos, então, esse tipo de adulto.
Sejamos chave — e não prisão.
📻 Saber disso me pegou demais esta semana.
🎒 Existe muita inspiração em crescer!
🌞 Amei as máscaras e o clima de outono.
🍁E por falar em outono…
🔥 Ando apaixonado pela mitologia hindu.
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