“Não eram apenas as histórias que transmitiam a memória do passado, mas também os modos de caminhar, se sentar, falar e rir, chamar alguém na rua, os gestos de cada um ao comer ou segurar alguma coisa. Estes modos passavam de um corpo para o outro […]. Uma herança que era invisível nas fotos e que, para além das diferenças individuais e da distância entre a bondade de alguns e a maldade de outros, unia os membros da família, os moradores do bairro e todos aqueles que, segundo diziam, eram gente como a gente. Um repertório de hábitos, um somatório de gestos moldados pela infância passada no campo e a adolescência nas oficinas, antecedidas por outras infâncias, indo assim até o esquecimento.”
{Annie Ernaux, em ‘Os anos’}
Quando meu pai morreu, herdei pouco dele.
Um Siena 2007. Dezoito mil reais em dívidas no banco. E uma tesoura de poda.
A tesoura, percebendo como era importante para mim, minha mãe exigiu de volta pouco tempo depois.
É agosto agora.
E mais do que o Dia dos pais, o que me faz lembrar dele ainda é a poda da parreira.
Foi com ele que aprendi a cortar cada galho, cada nó, para fazer tudo rebrotar. Em torno daquela tesoura, completamos um círculo completo, agosto a agosto.
Na infância, eu corria em torno dos seus pés, implorando para ajudar.
Ele, então, me mandava recolher os galhos, varrer o chão, essas coisas pequenas. Isso eu não queria! Queria subir na escada, enxergar alturas. Queria era brincar com a tesoura de cabo amarelo e bico de papagaio!
Mas não podia.
Ele até me deixava cortar um galho ou outro, e eu me emburrava por isso.
Aquilo não era ajuda! Era coisa de criança fazer. Eu não era criança, ora!
Era.
E não admitia.
Depois, adolescente, com vergonha dele, caminhoneiro simplório que nunca ouvira falar de Machado de Assis e Clarice Lispector, eu olhava com desprezo para a poda das parreiras. Nem chegava perto e deixava que ele subisse e descesse escadas sozinho, como era sozinho que passava pelos altos e baixos da vida - hoje eu sei.
Quando me mudei, foi para uma casa com parreiras também. E precisei dele. Precisei ligar para que ele viesse, tesoura em punho, podar as parreiras para mim. O sabido aqui podia entender algo de Machado de Assis e Clarice Lispector, mas morreria de fome se precisasse plantar e colher. Tonto e inútil.
Então, fiquei ao seu lado, segurei a escada, juntei os galhos sem ninguém me mandar. E aprendi, passo a passo. Poda a poda. Corto aqui, pai? Não, Finícios. Um pouco mais pra paxo. Senon non prota depois. Todo ano brotou.
Nas últimas vezes, invertemos as primeiras.
Eu ia pegar a tesoura algumas semanas antes, com a desculpa de mandar afiá-la. Até ele vir aqui, para me ajudar, eu já havia podado tudo sozinho. Era melhor do que convencê-lo de que não podia mais me ajudar, subir e descer escadas. De que ele estava velho para isso.
Estava.
Mas não admitia.
Ah, Finícios! Popagem!
Agora, podo a parreira sozinho, com minha filha correndo aos meus pés e querendo ajudar. Eu a mando recolher os galhos, varrer o chão. Tesoura não. No meio do serviço, sempre preciso parar. Digo a ela que caiu farelo da casca nos meus olhos. Não é. Não sei podar as plantas sem chorar com elas. Delas, escorre seiva. De mim, dor.
Enquanto meu pai vivia, herdei muito dele.
Olhando para nós dois, por exemplo, ninguém dizia que eu era adotado.
Tínhamos, afinal, o mesmo porte, o mesmo corpo, o mesmo jeito de andar, a mesma paciência, a mesma educação, a mesma vontade de não incomodar e de não brigar.
Toda vez que trabalho o Naturalismo na Literatura, revejo as teorias Deterministas que tanto me tocaram quando eu mesmo tive que estudá-las no Ensino Médio. Eu pensava, então, no que era mais forte: a genética ou o meio?!
De onde teria vindo minha busca pela Literatura? Pela Arte? Por tudo aquilo que, na época, eu considerava o suprassumo da finesse e da delicadeza?! Eu olhava para ele, braço queimado de andar pra fora da janela do caminhão, camisa aberta, barriga de fora, e me sentia tão alheio, tão distante, tão… superior é a palavra?
Que coisa patética eu era então, revirando os olhos para seu sotaque alemão - que eu daria tudo para ouvir outra vez - , para sua sabedoria bruta, que eu nem reconhecia como tal.
”Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.”
{Adelia Prado, em “Ensinamento”}
Hoje eu sei.
Sei que ele me deu seu sobrenome, seu cansaço, seu tempo de estar em casa, que era pouco. Ele me deu parabéns a cada conquista, me deu suas lágrimas de orgulho por ver o filho doutor, me deu a sabedoria de podar parreiras, além do gosto por café e balas de menta.
Ah… Café e balas de menta…
É tão triste e tão bonito como a vida se passa adiante.
Eu odiava quando pedia balas e ele não tinha as de morango, de uva ou de cereja para me dar. Só as balas dele: balas de menta. Aquelas de que eu não gostava, não queria, mas comia igual, fazendo barulho. Hoje, são minhas preferidas. Para acompanhar o café, aquele líquido amargo que eu também não entendia como ele podia passar o dia bebendo.
Hoje eu sei.
Hoje eu sei e vejo a minha filha reclamar das balas de menta, do cheiro de café, já sabendo que um dia serão minha herança também.
Alguns livros, uma vontade de mais e a paixão pelos gatos.
Uma tesoura de poda, balas de menta e café.
Se é pouco ou muito que deixarei de herança para ela, só o tempo dirá.
Mas é um elo.
E assim, a vida segue seu curso, como a parreira que se renova a cada poda. Agosto após agosto, o ciclo se repete, mas nunca é o mesmo. A tesoura recuperada, agora em minhas mãos, corta mais do que galhos; ela molda memórias, esculpe legados, e a cada corte, sinto o peso da herança que carrego.
Minha filha, com seus olhos curiosos, observa cada movimento. Ela não entende ainda, mas está aprendendo sobre mais do que apenas podar. Está aprendendo sobre a vida, sobre o crescimento e sobre a perda. Sobre como cada escolha que fazemos, cada corte que damos, define o que virá a seguir.
Um dia, ela vai entender. Vai entender que cada poda era uma lição, que cada galho cortado era uma história, um legado, e que cada lágrima derramada era uma expressão de amor. E talvez, apenas talvez, ela também vá chorar ao podar suas próprias parreiras, sentindo a seiva e a dor correrem juntas, unindo-a a mim, a ele, e a todos que vieram antes de nós.
E quando chegar a hora, passarei a tesoura para ela, não apenas como uma ferramenta, mas como um símbolo de tudo que somos e tudo que esperamos ser. E ela vai continuar o ciclo, agosto a agosto, renovando a parreira e a nossa história, mantendo viva a memória de um homem simples, mas extraordinário, que amava café, balas de menta, e sabia, mais do que ninguém, como fazer a vida rebrotar.
🧟♂️ Eu poderia passar o dia inteiro vendo este vídeo.
🌹 A vida é tão diversa quanto as esculturas de Frode Bolhuis.
🖼️ De vez em quando, a inteligência artificial acerta.
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que texto lindo <3
Nossa, que bonito.