"Eu tenho um coração"
“Será que ninguém vê
O caos em que vivemos?
Os jovens são tão jovens
E fica tudo por isso mesmo
A juventude é rica, a juventude é pobre
A juventude sofre e ninguém parece perceber
Eu tenho um coração
Eu tenho ideais
Eu gosto de cinema
E de coisas naturais
E penso sempre em sexo, oh yeah!Todo adulto tem inveja dos mais jovens
A juventude está sozinha
Não há ninguém para ajudar
A explicar por que é que o mundo
É este desastre que aí está”
{Renato Russo, em ‘Aloha’}
Há uma parte de mim que ainda segue trancada, no escuro, ouvindo Evanescence em uma noite sem fim, mergulhada na certeza da solidão e na esperança de que alguém - qualquer um - venha nos salvar.
E esta é uma parte importante minha, constituinte de tudo que eu sou. E eu quero que ela continue exatamente assim: sozinha.
Eu sei quem poderia salvá-la hoje: eu.
Como nos contos de desencantar, bastava uma frase, um beijo, um olhar meu e eu seria salvo. Mas para que eu tenha este poder, para que eu consiga dizer a frase, dar o beijo, olhar no olho aquela parte minha, eu preciso que ela fique onde está. É um paradoxo. Se eu a salvar, me perco. É do sofrimento dela que minha fortaleza vem. É do abandono dela que eu teci minha autoestima inteira.
Foi sozinha, ferida e ignorada que ela aprendeu a se bastar.
E eu sou o que sou porque ela ficou.
Porque, naquele quarto escuro, sem resposta nem companhia, ela não morreu (nem se matou).
Ela chorou, sim. Ela gritou.
Ela quebrou coisas de que já não existem mais nem lembranças.
Mas não morreu.
E é por isso que hoje eu ando firme.
É por ela que, mesmo sem entender o mundo, eu aprendi a caminhar dentro dele.
Ela é a minha fonte. Minha margem. Minha górgona e minha luz. Ela não precisa mais ser salva. Ela precisa ser mantida. Como se guarda uma relíquia, como se protege um cristal antigo, com a reverência de quem sabe: que o que hoje chamo de força nasceu de uma dor sem nome; que meu carisma foi forjado no silêncio das ausências; e que minha esperança — essa que muitos elogiam — não veio da fé, mas das desistências.
Dessa parte, eu herdei muita coisa. Sou seu contínuo. Sim, eu ainda penso em sexo. E em arte. E no fim do mundo. E em quando chegarão os ETs para nos destruir ou salvar. Sim, eu tenho ideais. E cicatrizes. E, a propósito, ainda choro por nós ouvindo “My immortal”. Mas isso faz parte da fome de beleza que nunca me deixou.
Mas o que ninguém vê — o que poucos imaginam — é que cada uma dessas coisas nasceu ali, naquela juventude em ruínas, naquela adolescência submersa em gritos mudos e canções góticas.
E é isso que me conecta aos meus alunos. É isso que me faz compreender o que eles passam, o turbilhão e a voragem que é ser adolescente em um mundo todo feito contra nós. Contra a exuberância, o sentimento, a sensibilidade.
Como trabalho integrado de Literatura e Artes, propusemos aos nossos alunos que criassem uma obra que expressasse o que eles têm por dentro. Caminhando entre as esculturas deles, aquela parte minha se fez brilhar. Porque eu me conecto com as folhas de livros coladas em um painel e com a frase em vermelho que diz que só na solidão das páginas e das músicas a alma pode respirar. Eu me conecto ao coração vermelho e pulsante que outra menina fez, cravado de galhos, perfurado, partido, mas de onde nascem rosas brancas.
Eu me conecto à escultura feita de espelhos quebrados que um menino montou, dizendo que era o jeito de mostrar como se sente por dentro: em pedaços, refletindo o mundo em estilhaços, mas ainda assim capaz de devolver luz. Eu entendo. Eu fui esse menino também. E talvez ainda seja.
Me comove a menina que moldou em argila uma boca costurada, com as palavras “não grite” escritas abaixo, porque me lembro de quando gritar parecia proibido. E de como o silêncio dói mais quando é imposto do que quando é escolhido.
Essas obras não são só trabalhos escolares. São mapas de dor. São diários sem palavras. São, como eu, tentativas de seguir em frente mesmo com tudo em ruínas por dentro.
E é por isso que eu insisto: a arte precisa estar na escola. Porque há gritos que só se expressam em cor, em forma, em textura. Porque há verdades que um adolescente nunca diria em voz alta, mas que pode desenhar. Porque há sentimentos que não cabem no boletim, mas que transbordam numa folha de cartolina.
E eu vejo, em cada trabalho desses, a possibilidade de resgatar — não aquela parte minha que ficou no escuro, mas outras, parecidas, que hoje habitam outros corpos, outras juventudes. Que talvez também estejam à espera de um gesto, um olhar, uma frase que as salve.
Mas, mais do que salvá-las, quero dizer a elas o que nunca me disseram:
você já é forte.
Você já sobreviveu a muito.
Você já é, por si só, uma pequena revolução.
E se um dia essa juventude doer tanto que parecer insuportável, lembre-se:
ela também é a fonte.
Ela também é a luz.
Mesmo nos dias mais sombrios, mesmo quando tudo parecer perder o sentido,
a arte — sempre ela — será abrigo.
E às vezes, abrigo é tudo de que a gente precisa para continuar.
Aquela parte minha, que parece presa, mas está contida, que o diga.
🖼️ Uma definição.
🎠 Uma frase: “Crie coisas que você teria amado quando criança”.
🌳 Num canto qualquer, um canto!
🌅 Certos vazios são essenciais.
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