"De tudo isso que a mãe contou, tem só uma coisa que não é verdade. Ele não é o teu pai. Eu sou teu pai!"
{Alfredo Libório Linné}
Se você procurar pelo autor de hoje no Google, não vai encontrar dele livro algum.
Juro. Nem sequer uma frasezinha no Pensador.
Na verdade, o autor de hoje mal sabia escrever. Ele estudou até a quarta série e sempre trocava letras, tanto na fala quanto na escrita. Batata virava patata. Vinícius foi sempre Finícius. E no entanto, ainda assim, ele é o autor da frase mais linda que eu já ouvi na vida. Esta que abre o texto de hoje.
Foi assim:
Eu tinha 21 anos e estávamos comendo, enquanto assistíamos ao Jornal do Almoço. Foi quando minha mãe disse:
— Vinícius, tá vendo aquele homem na TV?
— Tô mãe. O que tem ele?
— É o teu pai.
Dizer que o chão sumiu debaixo de mim é um clichê, eu sei. Mas como expressar de outra forma se foi mesmo essa a sensação?! Eu de repente fiquei sem chão, sem ar, sem norte. Eu não ergui mais a cabeça. Não olhei mais para o homem que dava uma entrevista no jornal. Tudo dentro de mim explodiu e desmoronou.
E foi então que eu ouvi a segunda versão da minha história.
Eu fui adotado e sempre soube disso. Mas a primeira versão envolvia uma lista de adoção, uma chamada muito esperada, uma mãe desconhecida, provavelmente muito pobre e cheia de filhos, que pensando em mim e me amando demais me entregou para adoção.
Era tudo mentira.
E eu soube disso assim, enquanto almoçava.
Quantas vezes, sem dormir à noite, as perguntas que eu me fazia no escuro eram grandes demais para um menino tão pequeno?! Por que ela não pôde ficar comigo? Quem era essa mulher? Ela ainda pensava em mim? Ela ficava triste no meu aniversário?! Ela alguma vez se arrependeu? Me procurou?!
Logo eu, que amava histórias, tinha um buraco na minha. Não sabia quem era minha mãe, e por isso imaginava. Minha maior fantasia era ir até ela um dia, sem ser reconhecido, só para ver, sabe?! Ver onde ela morava, como vivia, quantos filhos tinha. Só para entender… Entender se o que havia de errado era com ela ou comigo.
Já no meu pai biológico eu nunca pensei. Imaginava que talvez nem minha mãe soubesse quem ele era. Eu estava preparado para tudo, eu imaginava todas as situações: abuso, estupro, prostituição… Todas, menos aquela. De um dia, aos 21 anos, saber que a história que eu sempre gostei de ouvir e contar era uma farsa.
Não teve lista. Ligação.
Nada de mãe desconhecida com muitos filhos.
Tá vendo aquele homem lá na TV? É o teu pai.
Foi assim que a segunda versão veio à tona e me atravessou.
Em 87, minha mãe foi encaminhada a um psiquiatra em Passo Fundo. Um doutor que em vez de tratá-la, começou com uma série de questões. Tem filhos? Não. Por quê? Porque quando era novo, o Alfredo levou uma bolada que o tornou infértil. Já havia pensado em adotar? Sim. Sabia como era o processo e toda a burocracia envolvida? Não…
Então, o doutor avisou que havia um jeito mais fácil: a empregada dele, que ele tirou lá do interior e levou para morar consigo na cidade, estava grávida. A família da moça não podia saber, claro. Nem sequer desconfiar. Então, se meus pais quisessem, o bebê que nascesse seria deles.
Eles deveriam indicar um contato para intermediar tudo e nunca mais procurá-lo. Quando a criança nascesse, ele avisaria essa outra pessoa. Toma aqui também uma receita de Lexotan e passar bem!
Foi isso.
21 anos depois, aquele mesmo homem dava uma entrevista na TV, falando sobre traumas e violência no trânsito, especialidade que ele assumiu depois de perder a esposa (com quem já era casado na época) e as filhas em um acidente fatal.
Eu não olhei para ele. Eu não ergui mais a cabeça. Não toquei mais na comida.
O que eu precisava digerir ali era de outra ordem.
Foram 21 anos vivendo uma história de mentira. 21 anos me perguntando: “Se minha mãe já tinha muitos filhos, por que não pôde ficar comigo também?”.
Na verdade, ela tinha 18 anos na época. Nenhum filho mais. Era uma mocinha do interior, levada para trabalhar na casa do filho de um granjeiro forte que virou doutor. Quando ficou grávida, o doutor e a esposa prometeram que dariam um jeito naquilo. Ela achou que o jeito era outro.
Eu passei 21 anos sem imaginar que saberia quem era meu pai biológico e, de repente, ele estava ali, na minha frente na TV.
Eu duvidei dessa história. Era novela mexicana demais para mim. Duvidei até pesquisar pelo filho do doutor no Facebook. Ele tem um filho mais velho. Quando mostrei uma das fotos dele para minha mãe, ela achou que fosse eu. Eu também achei.
Foram 21 anos sendo enganado.
E foi então que, chorando, meu pai me chamou e disse:
— Finícius…. De tudo isso que a mãe contou, tem só uma coisa que não é verdade. Ele não é o teu pai. Eu sou teu pai! Nunca esquece disso! Eu sou o teu pai!
Foi isso o que me disse o Seu Alfredo, então. O meu pai.
Enquanto eu ainda tentava descobrir o que sentir.
Depois da ausência dele na minha infância, das nossas brigas na adolescência, aquela frase significou muito. Significou tudo. Porque ali eu fui acolhido e escolhido. Entendem? Ele era meu pai.
Não porque me fez. Não porque me criou. Mas porque me escolheu.
E ali eu o escolhi de volta.
Ele era, foi e sempre será o meu pai.
Mesmo que ele não esteja mais aqui para eu lhe reafirmar isso.
Meu pai não foi um “doutor” que engravidou a empregada e depois entregou a criança a uma paciente que necessitava, mais do que tudo, de um psiquiatra. Não.
Meu pai foi um caminhoneiro que mal sabia escrever. Que falava Finícius e patatinha, mas que fazia contas incríveis de cabeça e entendia tudo sobre tempos e distâncias. Tanto que, naquele dia, soube que haveria um tempo em que a distância entre nós seria tanta, que ele precisava dizer ali tudo que eu precisava ouvir.
Que ele era meu pai e tinha orgulho disso.
Obrigado, pai.
Para sempre.
🚛 Este vídeo me fez lembrar dele. Tanto das nossas viagens de caminhão, quanto de como ele, que sempre disse detestar animais, se apegou a cada gato e cachorro que eu carregava para casa.
🕊 Esta música SEMPRE me vem à mente quando penso nele.
🕯 Que saudade de poder visitá-lo agora que ele não está mais entre nós.
💚 Houve um tempo em que este era o melhor lugar para estar. Hoje ainda é. Mas desta vez, eu sou o pai.
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terminei o texto com lágrimas nos olhos. que lindo e corajoso!
Que texto emocionante, Vinícius!