Eu queria me acostumar como todos se acostumaram
“Vivíamos naquele lugar onde todos dormiam à mesma hora para acordar no mesmo dia. […] As vidas precisando se parecer para nenhuma chamar a atenção. Alguns partiam e, quando voltavam, se surpreendiam com a incapacidade de mudança que a cidade conservava. […]
O mundo acontecia longe demais de onde estávamos. As pessoas repetiam que ‘quando você acorda, a vida já passou’. Um mantra que repetiam até se tornar banal. Um carma insuportável. A voz dos mais velhos ecoando dentro dos pequeninos: ‘quando você acorda, a vida já passou’. Os goles de chimarrão para lubrificar a falta de assunto nas rodas de conversa. Quando você acorda, a vida já passou. A frase solta no meio da tarde, e depois o dia avançando sobre nós como se nada tivesse sido dito. As formigas descobrindo bolachas. Quando você acorda, a vida já passou. Eu queria me acostumar como todos se acostumaram.”
{Ismael Caneppele, em 'Os famosos e os duendes da morte'}
Às vezes eu tenho inveja deles, sabe?! Dos que se acostumaram.
Dos que não esperam mais nada da vida, muito menos de si.
Às vezes eu tenho inveja de quem faz dos dias algo muito pouco complicado. Acordar, trabalhar, voltar pra casa querendo nada mais do que uma cerveja gelada.
É. Eu tenho inveja de quem espera com ansiedade pela sexta-feira. Para beber mais e esquecer mais. Para ser feliz, de alguma forma, com dia marcado e tendo como trilha as músicas que fazem sucesso no rádio.
Em algum momento, porém, eu fiz um caminho errado.
Eu mexi em algum mistério que não devia mexer.
Eu li Clarice Lispector quando não era para ler. Eu fiquei sozinho demais quando não era para ficar. Eu entrei num galpão escuro e não percebi quem me esperava no fundo dele.
Não sei. Não sei.
É como se, em algum momento, eu tivesse quebrado alguma coisa preciosa por dentro. Uma coisa que, agora, por não ser inteira, exige de mim algum tipo de complexidade.
Há uma máquina quebrada em mim, que sempre sente falta.
Mas falta de quê?! Eu pergunto a ela. E faz parte do mecanismo não ter resposta.
Quem tem resposta vive bem. Vive em paz. Quando acorda, a vida já passou. Para eles, morrer não é nem um mistério. É entrar numa sexta-feira eterna. Open bar e uhuuuul!
Para mim, morte e vida se veneram, se enveredam, se entrecruzam e se misturam. É isso que faz a parte que quebrou em mim: torna tudo mais difícil de separar.
Eu tenho inveja dos que se acostumaram à vida. Dos que acham que está tudo bem. Saúde e paz, o resto a gente corre atrás!
Não estou fazendo juízo de valor algum aqui. Mesmo. Não estou dizendo “olhem que phyno e culto eu sou, um homem com uma dor”. Não é isso. Quem é assim também sabe. Me entende.
Desconfio, aliás, que se você está aqui é porque entende. É porque não se acostumou também, não se contenta, não se basta.
Se você está aqui, é porque algo de diferente tem. Uma peça quebrada. Essencial e quebrada, porque nos torna quem somos.
🫀 Tenho a impressão de que uma câmera, dentro do meu peito, mostraria isso.
👀 Por que, nesse minuto, tem mais gente vendo TikTok do que lendo?! A ciência explica.
📺 O livro citado hoje é INCRÍVEL. E deu origem a este filme aqui. Ambos são chaves para entender quem eu sou. Eles mostram exatamente de onde eu venho. Recomendo.