"Eu digo não para coisas que poderiam ser boas"
"— Por que eu deixo as pessoas me tratarem assim? Eu permito. Eu arrumo desculpas para isso. Tudo bem ela me bater porque a vida dela foidifícil. Mesmo quando eu vejo a desgraça, ainda deixo mais merda acontecer. Eu deixo as pessoas me tratarem mal e, quando elas não fazem isso, fujo. Evito. Eu digo não para coisas que poderiam ser boas pra caralho pra mim".
{ Angelo Surmelis, em 'A perigosa arte de ser invisível’}
Minha filha quer aprender a cozinhar comigo.
E eu aprendi a cozinhar com o meu pai.
Por isso, todas as vezes em que vou preparar alguma carne, começo do mesmo modo: colocando azeite e açúcar na panela, tal como ele fazia.
É...
Açúcar.
E, então, numa alquimia exata, eu espero.
E espero. E espero… Quase como naqueles memes, sabe?! Aqueles em que alguém pisca e pronto! O pão de alho torra. Ou o leite derrama, não sei.
Para evitar isso, eu espero de respiração suspensa. É preciso chegar no momento exato. O momento exato em que o açúcar derrete, depois deixa de ser transparente, vira um caramelo e começa a borbulhar demais, soltando fumaça, quase, quase queimando todo. Só então é hora de colocar a carne e a cebola para dourar.
A ideia de usar o açúcar assim é trazer cor para o prato, claro, e mais ainda sabor.
Um leve amargor faz parte do processo da cozinha. Aquele gostinho de quando a comida quase-quase pegou no fundinho da panela, sabe?! Então!
Essa era uma marca registrada do meu pai.
Agora é minha. E um dia será da minha filha também.
Mas é um processo delicado esse.
Exige um timing preciso.
Se eu colocar a carne cedo demais, corro o risco de deixá-la doce.
Se eu colocar tarde demais, tudo pode amargar irreversivelmente.
É quase tão delicado quanto viver.
Foi nisso que pensei esta semana, enquanto cozinhava e minha cabeça fervia.
Porque não é só essa alquimia das cozinhas que a Júlia Helena aprende comigo. Não. Ela já aprendeu instintivamente meu jeito de dormir, assim que conseguiu se virar no berço. Meu jeito de falar, minhas caras e olhos, meu tom de contar histórias…
E o que é pior: algumas das minhas atitudes nada louváveis diante da vida.
Foi assim: começou a me intrigar a forma como a Ju comemorava suas conquistas, como ela elogiava os outros, como se referia à doçura da vida: sempre com um toque de amargor no final:
“Achei lindo o teatro, pai. MAS o som estava muito alto!”
“Gostei muito, muito, muito do filme! MAS aquela parte do castelo foi meio desnecessária, né?!”
“A profe disse que meu trabalhinho ficou ótimo, pai! MAS eu queria ter usado rosa e não tinha!”
Se fosse uma vez ou outra, talvez eu nem ligasse…
Mas nada escapava desse MAS final.
“A Bruma é linda! MAS é uma tigra de braba!”
“Hum… Tá um gatão, pai! MAS você vai trocar esse tênis, né?!”
“Eu amo as minhas sardas! MAS queria que meu cabelo fosse cacheado”.
Horrorizado, eu notei que minha filha, tão pequena, tão infinita, tão encantada, aos 7 anos já não sabe ser feliz sem MAS. Já não consegue se entregar à doçura da vida e ponto.
Isso porque eu também não sei. Cada MAS que aparece ali foi antes meu. Um ingrediente amargo, um açúcar queimado demais que aprendi a colocar em cada prato também, por tradição de família.
Desta vez, não do meu pai, claro. Mas da minha mãe. Enquanto ele conhecia os tempos certos de cada sabor, ela sempre foi desequilíbrio: caldas muito doces e boca sempre amarga, a criticar tudo, a acabar com todas as coisas bonitas para mim. A desfazer o sabor da vida.
Foi ela quem me ensinou a colocar o MAS depois de cada conquista.
E eu aprendi bem. Desfaço toda vitória minha. Desmereço cada triunfo. Apago com culpa e com dor cada prazer. Eu evito o que é bom, fujo de quem me trata bem, ignoro quem me elogia. E tudo isso, sem uma palavra, eu ensinei à minha filha.
E foi só agora que percebi isso, vendo a mesma atitude nela. Só agora entendi que não é assim que a vida precisa ser. Eu quero para ela uma vida tão doce quanto ela conseguir cozer. Não precisa ter sempre amargor. Não na vida, por favor!
Só que para eu ensinar isso a ela, não basta falar.
Não basta conversar, explicar, dizer... É preciso viver.
Por ela é que eu tenho me podado aqui. Tenho reaprendido a ser feliz. Tenho calado meus MAS, tenho evitado o amargor, tenho deixado o açúcar adoçar o que deve ser doce.
Mudei a lição.
Vou deixar o açúcar queimado só para as panelas, junto com o que aprendi de melhor do meu pai. E vou olhar para a vida como ele olhava também: com olhos doces.
Sempre é tempo de reaprender.
Sempre é hora de equilibrar os temperos.
Sempre é possível tirar o amargor de uma receita de família ruim.
Mas precisa começar por você.
💌 A quem também se sentiu crescendo no armário debaixo da escada, só esperando a carta de Hogwarts, dedico este livro.
📝 Adorei a mensagem e a atitude. Aliás, já fiz algo parecido pela cidade, com uma turma de alunos. Fica a dica.
🌳 Eu amo variações sobre o mesmo tema. Parece limitar a criatividade, mas acho que é sempre insitigá-la.
🌟 Esta explicação interativa (não se esqueça de selecionar as legendas) é INCRÍVEL para pensar sobre como nosso cérebro aprende a focar no doce ou no amargo da vida (e depois se vicia nele!).
4. Se você quiser me pagar um cafezinho, não vou recusar, tá?! Alguns amargos vêm bem. Para isso, basta enviar qualquer valor via pix para: vinicius.linne@gmail.com. Se fizer isso, vou te achar um doce de pessoa. :D