“Eu adoraria sofrer por amor. […] Não sonho com uma união, um idílio, não sonho com uma felicidade romântica, mais ou menos durável, não, eu gostaria de experimentar uma forma específica de tristeza. Eu a imagino. Talvez já a tenha experimentado. Uma sensação a meio caminho entre a falta e o desconsolo da infância. […] Já há algum tempo, quando escolho alguém, quero saber se ele bate. (Não pago a mais por um tapa. O tapa não deve entrar na negociação.) Antes eu perguntava no meio do caminho. Hoje pergunto na hora. É uma pergunta incompleta. A verdadeira pergunta deveria ser: você bate?, e imediatamente depois, você consola? Mas não dá para perguntar isso. […] O que eu realmente quero não pode ser dito.”
{Yasmina Reza, em ‘Felizes os felizes’}
Quem consegue realmente entender um ser humano?
Só outro ser humano, claro.
Isso me veio hoje, lendo o sensacional “Felizes os felizes”, da Yasmina Reza.
Composto por múltiplas cenas cotidianas, todas elas narradas por personagens diferentes, esse livro consegue nos empurrar para dentro e nos deixar lá, bem no fundo de nós mesmos.
Nesse abismo que somos, a felicidade prometida no título é apenas uma luz bem distante, algo entre uma promessa e uma ameaça. Ainda assim - ou talvez por isso, conseguimos nos identificar em muitos dos momentos descritos.
Por quê?
Respondi logo no início: porque somos humanos.
Eu não consigo imaginar uma inteligência artificial conseguindo criar algo tão paradoxal assim quanto o desejo de sofrer por amor. O desejo desesperado de sentir alguma emoção, de se saber vivo.
Isso porque inteligência artificial alguma se apaixonou na quinta série, quando uma colega chegou atrasada e sol bateu nos cabelos dela de um jeito diferente naquele dia, incendiando tudo. Máquina alguma cultivou esse amor em segredo até a 8ª, quando finalmente alguém percebeu e contou para a menina em questão.
Não foram os computadores que ficaram vermelhos na volta para casa, quando ouviram dela: “nós somos e vamos ser para sempre apenas amigos”.
Não foram os sistemas de bites e bytes que aprenderam, sofrendo, a escrever poemas de amor. Não foram eles que descobriram como se entregar à solidão, à brisa da noite, ao brilho da lua.
Aquele ideal romântico, aqueles devaneios todos, dignos de Madame Bovary, não passaram por um processador, mas por um coração. Um coração meio partido, é verdade, meio quebrado, quem sabe. Mas que internalizou algo daquelas rimas ruins que usava: todo amor tem um pouco de dor.
E isso é bom.
É por isso que eu consigo entender esse trecho do livro de modo que I.A. nenhuma conseguiria explicar. Porque eu senti. E você também, aposto, o prazer que existe em amar, mesmo sozinho.
Porque amor nunca é sobre o outro.
É sobre a gente.
É sobre como a vida se tinge, sobre como o amor se espalha, sobre os sentidos que vêm e dominam cada partezinha nossa. Estou sendo trágico quase, eu sei. Mas fui formado pelos livros e arrebatado pelos filmes.
Se não for para deixar terra arrasada depois, que nem venha a paixão.
Foi Freud quem explicou que enquanto seres humanos somos movidos por fugir da dor e buscar o prazer. Uma máquina de inteligência artificial teria essa informação em seu banco de dados, com certeza, e poderia até cruzar esses conceitos para explicar a citação de hoje.
Mas isso seria insuficiente.
Porque esta máquina jamais teria experimentado a solidão de um domingo à noite. A espera por uma mensagem que não chega. A música que só de começar já nos faz atravessar o tempo só para sentir de novo o abraço de alguém.
Seria impossível para um processador compreender o sofrimento como parte integral do desejo, algo que nos lembra que as emoções mais intensas, aquelas que nos marcam e moldam, não são isentas de dor. Pelo contrário, é a própria dor que, muitas vezes, dá sentido ao amor.
Mas isso só nós sabemos.
Isso faz parte do arcabouço humano.
Saber que o que nos completa é o que falta.
O que nos dói é também o que dá prazer.
Sofrer por amor é melhor do que não amar - e isso não há ChatGPT que explique.
Ontem ouvi:
“Os computadores são estúpidos:
só fazem aquilo para que foram programados.
as árvores, os gatos, as casas velhas
são inteligentes”
{Adília Lopes, em “Bandolim”}
São inteligentes não porque pensam - decerto - mas porque sentem.
Porque acumulam histórias, não fatos.
Porque guardam lembranças, arranhões, amores que não se realizaram.
Porque têm em si corações entalhados, orelhas mordidas e janelas emperradas - como nós.
Ontem, li também que precisamos dar um jeito de continuar humanos.
Entre tantos robôs produzindo arte, escrevendo textos, gerando pinturas, precisamos continuar fazendo aquilo que nos diferencia.
E isso não é nossa capacidade de raciocinar ou de construir máquinas complexas. É a maneira como sentimos e experimentamos o mundo, como as pequenas tragédias pessoais nos moldam e nos fazem mais profundos.
Nosso desafio, então, é preservar essa essência sensível, essa capacidade de amar e sofrer, mesmo em um mundo cada vez mais digitalizado. Porque, no fim, o que nos cabe é nossa habilidade de transformar cada falta, cada dor, em um fio de beleza que tece a história de quem somos.
E é esse fio, invisível e indizível, que a máquina jamais conseguirá compreender. Porque a nossa conexão, no fundo, não é via wi-fi. É via palavra, é via falta, é via veia. É via alma. Sempre foi.
👾 É esse tipo de reflexão que me faz ser fã da Ann Handley - gênia da escrita e da produção de conteúdo! (Original aqui).
🔥 Estou viciado no perfil desse designer de capas de livros.
🌑 Achei minha cara!
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Bombou no Insta esta semana:
Que sensibilidade.. ♥️
sempre vai faltar humanidade à máquina.