"Eu vejo a mesma coisa nos meus clientes mais velhos o tempo todo. Eles têm obsessões diferentes, é claro: estamos prestes a ficar sem água ou alimentos, ou sem energia elétrica. A economia está à beira do colapso, e os planos de aposentadoria deles vão acabar em pizza. Mas, na verdade, eles têm medo de morrer. E, já que o mundo também morre, pelo menos para a pessoa, ela presume que o mundo vai morrer para todos. É um erro de imaginação, em certo sentido, uma incapacidade de conceber o universo sem que a gente esteja dentro dele. É por isso que os velhos se tornam apocalípticos: são eles que estão diante do apocalipse, e essa parte, o apocalipse privado, é real. Então, quanto mais o desaparecimento pessoal deles se aproxima, mais alguns deles projetam no meio a desgraça eminente. Além disso, às vezes há quase um espírito de vingança. Juro que, para alguns desses bilhões de pessimistas, o Armagedom eminente não é um medo, é uma fantasia. Porque se eles não puderem mais tomar seus martínis na varanda, ninguém mais deve poder dar um gole em nenhum. Eles querem levar tudo consigo, até as azeitonas e os palitos. Mas, na verdade, tudo está indo bem. A vida, a civilização e os Estados Unidos, tudo vai continuar seguindo adiante, indefinidamente, e é isso, na realidade, que eles não conseguem suportar. […] É melhor se inquietar com o colapso da civilização do que com o fim das próprias esperanças”.
{Liondel Shriver, em “A família Mandible”}
Nostalgia. Esse é um dos sentimentos com os quais eu mais gosto de brincar. Eu gosto da saudade do que acabou. Eu gosto de como o passado não volta, mas permanece vivo dentro de nós.
Bittersweet (amargodoce), esse é o nome do que a nostalgia significa para mim.
A palavra vem da língua inglesa e eu confesso que não a conhecia até esta semana. Foi assistindo ao Atlas do Coração (que já recomendei aqui), que me deparei com ela. Vamos à tradução:
Bittersweet é uma emoção crua e genuína, uma mistura de doçura e amargor contra a qual você nada pode fazer. Nela, tristeza e felicidade se misturam. Você pode senti-la, por exemplo, na sua cerimônia de formatura, quando troca de emprego, ou quando acaba um relacionamento que deu certo por muito tempo.
Agridoce seria nossa tradução mais próxima. Mas não sei. Falta a ela amargor. Acre é qualidade do que é ácido, azedo. E o que nossas lembranças carregam é mesmo amargor.
Quando conheci essa palavra, imediatamente ela se ligou em mim a esse trecho de “A família Mandible” (o livro é incrível e está em promoção na Amazon, #ficaadica). Para as pessoas descritas ali, o lado doce da vida acabou. Restou só o amargor. Para elas, é como se toda delicadeza, toda doçura, toda ternura possível, tivesse ficado para trás.
Queria que fosse só ficção. Mas tenho visto isso demais por aqui. Gente que odeia tudo. Só odeia. Gente que é composta toda por alarmes falsos e teorias da conspiração. Gente que quer conservar, desesperadamente, um passado mítico que nunca existiu.
É Jason Stanley, no sensacional “Como funciona o Fascismo”, quem esclarece o porquê: a ilusão de todas as gerações de que “no meu tempo era melhor” tem relação não com as condições políticas, sociais e históricas reais, mas com o fato de que na juventude, nós somos melhores. Nós temos ainda disposição, saúde, esperança, vontade de viver e de construir a própria vida. Isso garante nosso lado doce.
Conforme o tempo passa, conforme as portas se fecham, conforme nossa expectativa de vida diminui, toda essa doçura se consome. Resta, então, o amargor. Resta a condenação dessa juventude, que está toda perdida! Resta o alarmismo de que o mundo está acabando.
Triste notícia para eles: não está (eeer… quer dizer, pelo menos não imediatamente). Quem está acabando são eles.
E eles não suportam o fim.
Eu sim.
Eu gosto do que acaba. Eu gosto porque o que sinto na boca é bittersweet. Eu gosto dos fechamentos de ciclos, das portas batendo, das luzes se apagando no final. Gosto porque é o fim que dá sentido ao que se viveu. Vocês conseguem entender?!
É no fechar das cortinas que os aplausos vêm.
Eu senti isso forte esta semana, enquanto arrancava das paredes a decoração de Halloween da escola. Nossa, como deu trabalho montar tudo aquilo… E para quê?! Para arrancar as coisas no final, amassá-las e jogá-las fora?
Não! Para tornar única a experiência da festa.
Enquanto eu tirava tudo, várias profes passaram por mim e repetiram: “Ah, que pena! Deixa mais um pouco, está tudo tão lindo!”. Eu não tinha pena. Tinha satisfação. A decoração cumprira seu papel, agora era hora de ir. Estava livre.
Ao perceber que pensava assim, bittersweet, percebi também porque não fui ao cemitério no Dia de Finados, visitar meu pai.
Primeiro, porque não acredito que ele está lá. E, segundo, porque o que me invade sempre que penso nele não é dor, desespero, morte. Não é luto de vela acesa em cemitério.
É vida, é celebração, é tudo que ele significou e significa para mim. A lembrança é doce, porque vem carregada da certeza de que ele hoje é livre, é parte de mim e de tudo. E é amarga porque, claro, eu queria que ele tivesse ficado um pouco mais.
Meu pai envelheceu. Mas nunca se tornou amargo. Ele não queria o fim de tudo. Não queria a volta do seu passado glorioso, de jogador de futebol. Não queria conservar a nostalgia embalsamada em um museu.
Foi ele quem me ensinou a fechar ciclos. A deixar ir. A virar páginas.
Meu pai queria que o futuro o superasse, lançasse ramos, experimentasse o que ele não pôde experimentar e vivesse tudo que ele não pôde viver.
Bittersweet. Aprendi com ele, tenho certeza.
E espero que você aprenda com alguém também.
Espero que você não deixe o amargor te consumir. Nunca.
🪟 Esse podcast trata desse sentimento também, embora com outras palavras: “Não há vida sem falta”.
✏️ Esse portal recheado de filmes, curtas e documentários gratuitos vai explodir sua mente. Juro. Não deixe de conferir a seção “Pensamento”. Tem MUITO material incrível. Esse aqui, com a Mariana Henriquez, foi um dos meus favoritos.
🎋 Eu amo tanto a Newsletter do Tiago que a minha só tem essa parte de links graças a ela. Numa das últimas edições, ele compartilhou esse vídeo aqui, com 50 pessoas diferentes picando cebola. Parece simples, né?! Mas faz pensar demais no quanto cada um no mundo é único e faz falta, viu?!
"Eu gosto dos fechamentos de ciclos, das portas batendo, das luzes se apagando no final. Gosto porque é o fim que dá sentido ao que se viveu. Vocês conseguem entender?!"
Mais ou menos.
Eu entendo e inclusive me identifico muito com isso que tu trouxe. Existe um sentimento de sentido nos finais, de fechamento. Olhamos e retrospectiva e encaixamos as peças do que passou, mas que na hora parecia caótico. As vezes mentimos para nós mesmos nesse processo.
Ao mesmo tempo, o fim dar sentido ao que se viveu é estranho. Sabe todo aquele papo de aproveitar a jornada? Parece que isso se perde quando pensamos que o fim traz sentido.
Acho que o fim pode trazer sentido, mas as vezes a jornada em si era o sentido. O fim é só uma marcação.
Não sei se ficou claro o que eu quis passar, mas eu gostei muito dessa reflexão.
Abraço!