"Diga-me alguma coisa, qualquer coisa!"

ago 19, 2024

“— Eu não consigo imaginar você vivendo em outro lugar, sinceramente. — Disse Philip. Ele desviou o olhar dela. — Espero que funcione, de todo jeito. Olhe, aí vem um táxi. Eu vou chamá-lo.

Esqueça o táxi, Rose queria dizer. Diga-me alguma coisa, qualquer coisa! Estou cansada de viver no passado... Mas o táxi amarelo parou, e ela não teve outra escolha a não ser entrar.”
{David Leavitt, em ‘The Lost Language of Cranes’}

A citação de hoje não é como costuma ser.
Não é um trecho inspirador, filosófico, bonito…

Na verdade, essa passagem faz meu coração encolher umas duas polegadas cada vez que releio. Por reconhecimento e angústia, eu acho. Por dor e silêncio, sabe?! Por mim e também por você.

Para que você entenda, no romance em questão, Rose tem lá seus 40 e tantos anos e está prestes a ter que se mudar do apartamento onde viveu boa parte desse tempo. Philip é seu filho, de 21 anos, que já seguiu com a própria vida.

Nesta cena, a angústia de Rose escorre das páginas e me inunda, vira minha também.

Numa área da cidade pouco familiar, Rose tenta assimilar a vida do filho que já não parece mais conhecer. Seus amigos estranhos, suas conversas cheias de sofisticação e sarcasmo, seu tempo que é outro, embora ela continue a viver nele, só que agora como coadjuvante.

Ali, entre as calçadas sujas, entre os mendigos e os hipsters - sem conseguir diferenciar muito bem uns dos outros -, Rose só queria dizer chega! Chega! Olhe para mim, fale comigo, meu filho! Me tire desse não-lugar em que eu me meti ou a vida me meteu, não sei! Abra um espaço para mim! Me faça existir, pelo amor de Deus!

O filho não precisa mais dela.
O marido também não.
O apartamento deve ser desocupado.
E ela não pode resolver nada disso.
Ainda assim, Rose sente que tudo depende dela.

Rose só queria gritar, eu sei.
Quantas vezes eu mesmo só quis gritar, como ela.

Mas ela sorri e entra no táxi.

Ela sorri e segue a própria vida como se nada estivesse fora do lugar.
Ela sorri como quem representa um papel mil vezes ensaiado, como se tivesse todo roteiro na cabeça e esta fosse só a hora de seguir a marcação.

Às vezes, as palavras se perdem dentro de nós.
Às vezes, não achamos o que dizer porque não há frase que dê conta de colocar para fora o que vamos demolindo por dentro.
Às vezes, as sílabas se enroscam no esôfago, trancam na garganta, fazem-nos engasgar com a falta de coragem.

Esta news é uma ode a tudo que eu não disse.
Esta news é um réquiem àquelas vezes em que o meu sorriso foi grade prendendo na boca as frases mais feias ou mais lindas de se dizer.

Sim, porque eu calei muitas ofensas ao longo dos anos. Eu tive muito medo de desagradar, de não ser querido, de ficar sozinho. Eu engoli desaforos, eu sorri para ofensas, eu deixei de me fazer respeitar em inúmeras ocasiões.

Mas isso ainda diz pouco.

Diz pouco porque foram muitas mais as vezes me que eu calei o meu amor, em que eu escondi o meu carinho, em que, por puro pudor, eu não sei, eu deixei sair da minha vida como se não fosse nada, como se não doesse, quem eu amava.

Quantas vezes eu deveria ter dito mais?

Quantas vezes eu deveria ter dito: se você for embora agora, meu coração vai vir abaixo. E eu não sei se vou me recuperar. Eu queria conhecer suas histórias, te ouvir por horas e horas, ver como brilha o sol quando nasce refletido no teu olho esquerdo, aquele que tem mais manchas do que o outro.

Quantas vezes eu deveria ter pedido ajuda. Quantas vezes eu deveria ter dito que me sinto, a maior parte do tempo, triste e sozinho, sem vontade nem de viver, quanto mais de sorrir. E, em vez disso, em vez disso eu falei do tempo. Das coisas por fazer. Do verão que não chega…

Quantas vezes eu, que sou todo das Letras, que faço arte em forma de Literatura, toquei só o silêncio, por não poder falar nem de amor, nem de dor?!

Eu aprendi a linguagem perdida dos guindastes desde pequeno, sem acolhimento algum. Eu aprendi a frieza das máquinas, os giros do liquidificador, inexpressividade do freezer. Eu aprendi a me congelar por dentro sem falar do que é humano. Sem dizer um “eu te amo”, um “me ajuda”, ou “volta pra mim?”.

O abraço que não demos, o pedido de desculpas que não oferecemos, a declaração de amor que ficou presa no peito. Às vezes, as palavras se perdem dentro de nós. Elas se enroscam em nossas gargantas, formam nós de silêncio e se transformam em um peso que carregamos. Ou pior: se transformam na vida que levamos.

Quem seríamos hoje se tivéssemos dito tudo que calamos?
Se tivéssemos completado a vida, feito palavra cruzada, em vez de deixá-la em branco tantas vezes?

Há uma dor sutil em perceber que, talvez, isso que vivemos seja só uma sombra sutil do que poderíamos ter vivido. Afinal, cada silêncio representa uma oportunidade perdida, uma resposta que nunca chegou, uma página que ficou em branco, uma linha que emudeceu.

Talvez, a resposta não esteja em lamentar o que não foi dito, mas em aprender a encontrar a voz que se esconde dentro de nós. Talvez seja hora de dar espaço ao que foi silenciado, de encontrar a coragem para dizer as palavras que ainda estão presas na garganta.

Porque o que realmente importa não é o que calamos no passado, mas o que decidimos falar agora, enquanto ainda temos tempo. O que importa é o momento em que decidimos quebrar o silêncio, não subir no táxi, abrir o coração e finalmente deixar as palavras fluírem livres, sem medo do que possam causar.

E assim, no meio de tudo isso, talvez possamos redescobrir quem realmente somos. Não a versão congelada de nós mesmos, que aprendemos a mostrar ao mundo, mas a pessoa que vive por trás do sorriso ensaiado, que sente, que ama, que chora.

Quem sabe, ao encontrar essa voz, possamos transformar a vida que levamos em uma vida que realmente vale a pena viver. Uma vida de menos silêncios e mais ação.

A começar agora. Por aqui.
E então: o que você tem a dizer?!