"Conheço gente como você. Você está tão cheia de raiva e de pesar que não consegue expressar em palavras o que sente. Se admitir a dor, tem medo de acabar sendo apenas uma vítima; e, se admitir a fúria, tem medo de acabar sendo um carrasco".
{Rosa Montero, em 'Lágrimas na chuva'}
Nossa história não está dada como nos livros. Começo, meio e fim, todos escritos. Não. Nossa história se compõe e recompõe. O futuro é incerto, claro. Mas quem disse que o passado está concluído, fixo, imutável?
O meu nunca esteve. E talvez eu sinta falta disso.
Mas cada coisa que eu fico sabendo, cada nova versão do meu nascimento e da minha infância, reescreve minha história inteira. Me obriga a rever quem eu sou e o papel que ocupo aqui.
Vítima ou carrasco? Quem sou eu, afinal?
Não quero ser nenhum dos dois. Porque ambos me tornariam igual a ela.
Eram 4h da manhã de quarta-feira, quando eu me revoltei. A compreensão de tudo foi crescendo em mim, vindo em ondas, até explodir com o sino da igreja anunciando as horas.
Eu estava no hospital, de novo, na sala de observação. Minha mãe dormia pesado, roncava. Eu não. Sentado, sentindo frio, sono, fome, desespero, eu quis gritar.
Ela estava fingindo. De novo. Eu já sabia. Mas o médico precisou de vários exames para saber também. Fomos dispensados pela manhã, com um encaminhamento urgente a um psiquiatra. Finalmente, depois de 35 anos, caía sua máscara de vítima.
E foi isso que me revoltou: a facilidade com que alguém poderia tê-la parado e não o fez. Esse tempo todo… Ninguém. Ninguém foi capaz de levá-la adiante. Ninguém a fez encarar o espelho. Ninguém.
E a história é longa.
Há 35 anos, minha mãe foi encaminhada a um psiquiatra pela primeira vez. O Doutor não a tratou. Não... O que ele fez foi entregar um filho a ela. O filho da sua empregada. E talvez dele mesmo.
Além disso, o bom Doutor pediu para que não tivessem mais contato algum. E essa é toda a história da minha adoção. Pelo menos a versão que eu conheci aos 21 anos.
Ali, ela deveria ter sido parada, impedida de continuar, tratada.
Mas não foi.
Não foi nunca.
Eu fui registrado ilegalmente, como filho legítimo. Sem uma avaliação, sem um parecer, sem um assistente social, um psicólogo, um conselheiro tutelar. Sem ninguém. Só meu pai.
Na semana passada, minha tia disse que ele um dia procurou meus avós. Desesperado também. Disse a eles que queria se separar. Que a vida dele era um inferno. Todos. Os. Dias. Mas que ele não se separava dela por minha causa. Pelo medo do que ela poderia fazer comigo se ele não estivesse ali para impedi-la.
O problema é que ele já não estava.
Meu pai era caminhoneiro. Ele viajava o tempo todo. Passava semanas fora. E eu ficava com ela. Com as doenças imaginárias. Com as humilhações diárias. Com as mentiras que eu era obrigado a confirmar. Com tudo que eu precisava fazer em um dia para servi-la. Minha folga, meu respiro, meu tempo de brincar e viver era sempre das 13 às 16h, enquanto ela dormia. Eu sentia vontade de chorar toda vez que o despertador tocava.
Ontem, a vizinha disse que nenhum menino da rua gostava de mim. Porque eu era esnobe demais. Ficava só sentado dentro de casa, sem querer brincar com eles.
Mas meu Deus! Eu não tinha querer. Ela não deixava eu me aproximar de ninguém. Ela destruía qualquer um que conseguisse passar pelas suas barreiras.
“Vinícioooooos, vem cá! Eu recebi um telefonema anônimo hoje. (era mentira!) Que história é essa de que tu anda pra cima e pra baixo com a Paôla?! Ela não presta, viu?! Não vale nada! Diz que até machorra ela é! Ai de ti se eu souber que tu continua amigo dela! AI DE TI!”.
Ai de mim.
Ai de mim se eu contar tudo. Se eu contar que na adolescência não podia sair de casa. Se eu contar que desenvolvi psoríase e que ela me obrigava a deixar que ela me desse banho. Com 15 anos. 15 anos. O constrangimento, o nojo, a vergonha, a psoríase aumentando sem parar.
Se eu contar que ela me chamava de gordo, de feio, de careca. Se eu disser tudo que ela me dizia quando ninguém estava olhando. Se eu contar que ela me quebrou inteiro por dentro. Se eu contar que no último dia de finados ela prometeu que ainda vai me enterrar no jazigo da família…
Daí, ai de mim.
Ai de mim porque vou virar a vítima dessa história toda e eu não posso ocupar esse espaço. Não quando perto dos outros foi ela quem sempre se vitimizou. Foi ela sempre a coitadinha. A frágil. A doente. A esposa traída. A mãe de um filho adotado e ingrato.
E se eu gritar? Se eu gritar tudo isso, assim, na mesma torrente com que escrevo. Com a mesma fúria. Com o mesmo tremor de mãos. Se eu gritar, como gritei na semana passada, olhando no olho dela, e recebendo só o vazio de volta?
Ah, daí eu vou ser o algoz.
Mas esse papel também sempre foi dela. Sempre foi ela quem odiou e puniu nós dois. Meu pai e eu. Até ele não aguentar mais. Até ele morrer de um infarto fulminante numa das discussões dos dois.
Dos dois não. Ele não discutia. Ele ouvia e calava. A vida inteira. E foi por isso, por isso, que eu me revoltei às 4h da manhã de quarta-feira. Porque ele não fez nada. E meus avós não fizeram nada. E meus tios não fizeram nada. E as vizinhas não fizeram nada.
Ninguém fez.
E eu cresci não sei como.
Ou melhor, sei: parando de sentir. Isso eu também disse para ela. Eu não sinto mais nada. Para sobreviver naquela casa sem me matar, eu precisei deixar morrer em mim qualquer parte que sentia. Perto dela, eu sou uma pedra.
Por isso, agora, eu não quero ter pena de mim mesmo.
Nem quero que você tenha, por favor. Eu detesto o papel de coitadinho.
E eu também não posso me deixar dominar pelo ódio, pela vingança. Porque, agora, eu fui o único que restou para cuidar dela. Meu tio, por exemplo, disse assim: eu não posso ter minha vida destruída. Sinto muito.
Ele sente muito. Todos sentem, agora que estão sabendo de parte do que acontecia naquela casa.
Fazer saber…
Finalmente, esse é o meu papel. Isso é o que me cabe.
Nem vítima, nem algoz. Mas testemunha. Aquele que coloca em palavras o que sentiu, o que soube, o que viveu. Não para gerar pena ou revolta. Mas para que outro Vinícius, tão perdido como aquele, encontre alguma luz e escape. Escape antes de ser tarde demais.
Para ele, é que preciso dizer: conheço gente como você!
Você é mais forte do que pensa e vai conseguir passar por isso também.
Por favor, não enlouqueça.
E não se esqueça quem você é!
(Aviso: toda essa parte só existe porque deixei ela pronta antes do texto principal. Se precisasse fazer a seleção agora, eu não conseguiria)
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Não senti pena. Fiquei foi feliz por ter agora ter a consciência e reconstruir seu caminho. Me encontrei em alguns pontos.
Que texto forte Vinícius. Parabéns pela coragem de compartilhar com os outros um relato tão íntimo da sua história de vida. Senti cada momento, de dor, de raiva, incompreensão, abandono. Me alegra saber que hoje em dia, tendo vivido o que viveu, você escreve. E escreve para os outros e não apenas para si. Porque isso significa que apesar dos traumas você superou a barreira do medo e extravasa com seu relato todos os seus sentimentos e prismas. Siga em frente...e como acredito que já faça...Vez ou outra olhe para trás, sem ser vítima nem carrasco.