“Então o que fazer? Mais uma vez dar razão a ela? Aceitar que ser adulto é parar de se mostrar, é aprender a se esconder até se dissipar? Admitir que, quanto mais os anos avançam, menos eu sei de Lila?”
{Elena Ferrante, em ‘História da menina perdida’}
Quanto mais eu leio a tetralogia de Elena Ferrante, mais me convenço de que ela é uma releitura, feroz e íntima, de um clássico que inaugura o Realismo na França: “Madame Bovary”.
Elana, como Emma, é uma mulher que se recusa a aceitar o papel que o mundo lhe entrega. Que transborda, que deseja mais — mais beleza, mais emoção, mais intensidade — num cotidiano que insiste em lhe oferecer menos. Ambas sofrem com a distância entre o que imaginaram da vida e aquilo que a vida realmente é. Ambas pagam o preço de desejar demais.
Se Emma sonhava com romances ao estilo gótico e era esmagada pela previsibilidade do casamento burguês, Elena sonha com liberdade num bairro que a enlaça com violências estruturais, códigos patriarcais e silêncios herdados.
Ferrante escreve com a crueza do mundo moderno — sem véus, sem a moral católica de Flaubert, mas com o mesmo desespero latente: o de perceber que a realidade nunca alcança o delírio da imaginação. E que amar, no fundo, quase sempre é um gesto de autodestruição.
Ler Ferrante depois de Flaubert é como reler a mesma angústia, só que agora com unhas lascadas, correndo pelas vielas de um bairro napolitano, dizendo palavrões e perguntando, entre dentes cerrados:
“Era só isso mesmo?”
E o pior é que ecoa em mim também a pergunta. "Era só isso mesmo?" Outra segunda-feira qualquer. Outra vez a sensação de esforço ao levantar da cama, a falta de sentido posta nas coisas, a ausência de mensagens ao acordar, de um encontro escondido ao meio-dia, de uma possibilidade de fuga ao pôr-do-sol. Nada além de uma reunião e de comprar pão?!
É este mesmo o auge da vida?! Nada parecido com as emoções das novelas? As páginas dos livros, os plot-twists das séries?!
Só as obrigações.
A água fria da pia.
A notificação do grupo da escola que não para, nem em domingo.
A lista de compras.
A padaria fechada.
E dentro de mim, uma Emma. Uma Elena.
Alguém que pergunta — em silêncio, com os olhos:
“Cadê a emoção que me prometeram?”
“Cadê a intensidade que juraram que era viver?”
Talvez ser adulto seja, sim, aprender a viver com o copo meio vazio e a alma meio cheia. Ou o contrário.
Mas não consigo sentir que cheguei nessa espécie de desistência. Nesse embrutecer de quem se entrega, de quem admite que já passou pelo melhor trecho da vida e que agora é isso mesmo: essa repetição dos dias, das tarefas, da rotina. Pequenos incêndios por toda parte, mas nada de chama que arde sem se ver.
E eu, que sempre fui de esperas secretas — de bilhetes escondidos, de olhares que duram mais do que deviam — agora encaro o teto e penso: será que acabou?
Será que esse silêncio, esse cansaço, essa paz morna é tudo o que restou do furacão que um dia fui? Será que me tornei aquilo que mais temia — um adulto funcional, eficiente, mas invisível?
Não era isso que eu queria. Eu queria o espanto. Queria os olhos brilhando de novidade. Queria aquele arrepio que começa na nuca quando alguém diz o seu nome com uma entonação nova.
Eu queria vento no rosto e desordem nos móveis. Queria a mesa virada na sala, e não a mesa posta às seis da tarde.
Mas a vida veio com seu roteiro. Veio com senhas, calendários, boletos e travesseiros divididos em silêncio. Veio com a exaustão que engole a vontade de surpreender. Com a fome que não é de comida. Com a sede que não é de água.
E aí, Emma, você aprende. Aprende a dançar no quase. A achar beleza no ruído do ventilador. A aceitar a solidão mesmo acompanhada. A se amar mesmo quando ninguém está te olhando.
E descobre — no fundo, lá no fundo — que talvez essa tristeza que às vezes te invade não seja fracasso. Mas o eco do que em você ainda pulsa. Do que em você ainda grita. Do que em você ainda acredita.
E então, de repente, não é que você desiste.
Você decide.
Decide que não vai mais implorar por cor onde só há escala de cinzas. Decide que não vai mais pedir intensidade a quem só sabe medir os dias em compromissos.
Você se levanta.
Não por heroísmo.
Mas porque, no fim das contas, há sempre algo em você que insiste.
Que quer viver de verdade, e não só sobreviver.
Que quer arder, e não apenas manter a chama acesa.
E talvez, Elena, o verdadeiro milagre da vida adulta seja esse: ter sobrevivido a todas as desistências e ainda assim desejar.
Mesmo sem mensagens pela manhã.
Mesmo sem fuga ao pôr do sol.
Mesmo com a pia cheia de louça e a alma também.
Você deseja.
E isso — isso é o que ainda te faz inteiro(a).
🪻 É isso: essa fusão do clássico e do (inútil?) cotidiano.
☕︎ Dos poemas que a gente não vai receber hoje.
🪟 Por dentro do dentro.
🥣 O que toca ressoa.
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