

Discover more from Leu? Li, nné!
"A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.".
{Caio Fernando Abreu, em “Linda, uma história horrível”}
Em algum lugar daquela casa, daquela casa que eu costumava chamar de minha, entre todo lixo e toda merda, há uma pintura dela. Um retrato a óleo que algum pintor apaixonado fez, na década de 70.
Ela era linda! Meu Deus como era linda!
Imagine uma jovem Jane Fonda, nada menos, por favor.
Para o quadro, ela usava uma blusa de lã azul, de gola alta. Cada brinco era uma gota de sangue. Os cabelos, louros e longos, caíam do alto da cabeça, num penteado austero e elegante. Sua expressão era de puro desdém. O pintor não tinha a menor chance, dava para ver. Mas o que mais me impressionava sempre eram os olhos. Olhos de ágata verde, olhos que as fotografias dela da época, todas em preto e branco, nem deixavam imaginar.
Ághata.
Foi esse o codinome que eu lhe dei. Por causa dos olhos, claro. Mas também porque ela toda exigia um nome forte: suas unhas vermelhas, sua elegância de imperatriz austríaca, seus chambres de seda arrastando longos e lânguidos pela casa, seguindo o rastro da fumaça do cigarro que ela carregava nas pontas dos dedos.
Ághata.
Era assim que eu a chamava nos meus textos todos. Na personagem que eu criei para ela porque não podia, de jeito nenhum, odiar minha mãe. Mãe não se odeia, essa é a mensagem subliminar que repetem todos os comerciais de guaraná. Mas Ághata… Ághata sim.
E para mim, a certa altura, ódio e Ághata se tornaram sinônimos.
O ódio dela por mim. Ele sempre me veio pela voz. Sempre chegou me ferindo primeiro pelos ouvidos, só depois é que balançava por dentro meus pedaços de ser. E eu fui um menino trêmulo. Por dentro, escombros, estacas, tijolos partidos com os quais ninguém queria escrever nas calçadas. Por dentro assombros, pulos, telhados quebrados pela fragilidade tamanha. Eu era só uma criança e ela me fez acreditar que Deus me odiava. Eu era só uma criança e, ainda assim, pedia a Ele que deixasse Ághata muda (ou pelo menos morta).
Pelos gritos. Ela sempre me cortou pelos gritos. Os olhos verdes me doíam, sem dúvida, me açoitavam a pele, me deixavam os vergões vermelhos nas pernas, mas era só pelos gritos que ela conseguia me sangrar por dentro.
Dela, os gritos. De mim, o desespero.
Um dia, gritei também. E de estarrecimento, ela ficou muda. Eu havia lhe atingido, finalmente? Não sei. A mudez não durou. Minha voz era fraca, minha força desistente. A voz dela voltou, feito fênix renascida na vermelhidão das suas pontas de cigarro. E foi então que eu soube que perderia para sempre.
Mesmo agora. Eu homem. Eu forte. Eu grande. Eu capaz de fazer o que Deus não fez. Mesmo agora, ela grita e os espelhos se estilhaçam aqui dentro de mim, cravando cacos na minha carne, mostrando as pontas por baixo da pele, me matando, cada vez um pouquinho mais.
Escrevi isso em 2011. Eu tinha então 24 anos. Mas ela ainda conseguia me machucar como fazia quando eu tinha 12. Como conseguiria ainda agora, aos 35, se eu não tivesse entendido o que ela é.
Mas não foi sempre assim.
Não foi sempre o ódio o que nos ligou.
Eu amei muito a minha mãe. E quero (ou preciso?) acreditar que fui amado também. Fui amado quando bebê, quando ela me adotou. Fui amado enquanto crescia e ela destruía seus sapatos bordados para me deixar brincar com as miçangas coloridas. Fui amado quando convulsionei, aos 4 anos, e ela imaginou que me perderia para sempre. Fui amado na vida de bibelô que ela moldava para mim.
Até eu quebrar.
Até eu não servir mais.
Até eu não ser para ela tudo que ela queria que eu fosse.
Desde aquele momento, eu passei a fazer parte dos outros. Todos os outros, os que ela odiava e de quem precisava se vingar sempre e a todo momento. Incluindo nisso meu pai, meus avós, seu irmão, as vizinhas todas, todo mundo, enfim.
Conforme eu crescia e queria me tornar mais independente, ela encontrou maneiras de me quebrar inteiro. De destruir minha autoestima, minha confiança, minha capacidade de acreditar que eu poderia ser digno de qualquer amor.
Eu precisei crescer e aprender o que é Transtorno de Personalidade Narcisista para entender as suas mentiras, sua mania de grandeza, seu fingimento para chamar a atenção, as vezes todas em que ela me fez pensar que era eu o louco da casa, não ela. Jamais ela!
Ela… Agora Suely Maria Linné, não Ághata, caída na imundície daquela casa.
A casa que uma vez foi minha. A casa de onde ela me expulsou. Da qual me trancou para fora e não me deixou entrar nem com a sua neta vomitando, doente, na calçada, precisando de um pouco de água.
Ela, agora, encontrada por uma vizinha caída, desmaiada….
Mas desmaiada não com um, mas com dois travesseiros na cabeça. Tendo sofrido um mal súbito, logo depois de deixar um quilo de ração aberto no chão para os cachorros. Ela, autodiagnosticada com um derrame, um AVC, dois cânceres e uma overdose de barbitúricos, coisas que nenhum dos três médicos que a atenderam conseguiram identificar.
Ela mesma.
Com quem eu fui para o hospital, ainda assim. Em quem eu dei banho lá, sequei os cabelos, num arremedo do que aprendi a fazer com a minha filha. Ela, que eu amparei para ir ao banheiro, dei comida na boca, ajudei a esconder o estado das calcinhas.
Ela mesma.
Que disse que sua vida nas minhas mãos seria como a de um cachorro. Que o que ela mais desejava no mundo era me ver doente, bem mal, internado lá, nas mãos dela para sofrer. (E não é isso que toda mãe deseja a um filho?) Tudo só porque eu disse que um pijama de malha seria mais adequado para sua condição de senhorinha de 71 anos do que a camisola transparente de renda que ela insistia em usar.
Não me importei.
Ela já disse que ainda vai me enterrar, que só espera por este momento. Tudo nela envelheceu, eu reparo, inclusive os insultos. Só o que continua igual são os olhos: verdes e de pedra.
Olhos que agora se abrem e se fecham na minha casa, onde eu a acolhi, esperando, só esperando o próximo acidente nuclear romper entre nós. Apostando, silenciosamente, em quem ainda enterra quem.
Mas basta olhar para nós dois para ter um palpite.
Ela ganha cores novas, come bem, enche a pele por cima dos ossos. Limpa e cuidada, ela desabrocha, se emburra, manda e desmanda já. E eu? Eu murcho. Envelheço em olheiras postas, sem saber como viver com ela.
Ela, feita de ágata, como sua própria mãe e sua avó antes disso. Eu não.
Eu não! Exatamente.
E esta é a minha maior vantagem.
🪆 Este perfil aqui é o que eu recomendo para qualquer um que tenha se identificado mesmo que por alto com o texto de hoje. (Vocês não fazem IDEIA de quantas mensagens eu recebo toda vez que toco nesse assunto. Parece que as propagandas de guaraná estavam erradas, no fim).
🚬 Hoje eu não tenho arte leve para indicar. Então, tome este curta, baseado no conto que abre a news. Eu acho incrível como o Caio conseguia escrever mais do que uma cena, um clima que traduz relações. Recomendo demais os contos dele por isso. Por melhor que seja a adaptação no curta, vale a pena se inteirar dos cheiros, dos interditos, das sujeiras e das sensações desse texto.
🖤 Por fim, um apontamento: quando Estou feliz que minha mãe morreu se torna um dos livros mais vendidos da Amazon, acho que está na hora de revermos os mitos em torno da maternidade e do seu amor incondicional. Como criança adotada, eu tive duas mães e, pessoalmente, não recomendo a experiência. 🫠
"Até a morte de qualquer um dos dois"
Eu sinto tanto, não só por você mas por todas as crianças que ainda serão quebradas por mães narcisistas.