“Não sei quem me ensinou a voar
não sei quando comecei a voar
mas lembro-me nas primeiras tentativas
de me estatelar no chãoAprendi a voar sem asas
aprendi a caminhar sobre brasas
aprendi a caminhar sem ter chão”{Jorge Sousa Braga, em ‘Exercício’}
Hoje, preciso compartilhar uma história e três lições.
Uma história para ensinar, três lições de memorizar.
Serão necessárias, juro, nas provas da vida.
Hoje, esta news não é só minha.
Ela vem da angústia que ouvi de uma aluna.
E vai, portanto, para ela também. Que seja alívio: arrancar de casca de ferida.
Enfim, foi assim: eu estava para lançar meu primeiro livro.
E acho que só quem sonha há muito em ser escritor consegue sentir - mais do que saber - o que se passa com a vida inteira da gente então. Meu livro. Meu nome na capa, minhas palavras ali, impressas e ilustradas. O primeiro ISBN a gente nunca esquece. Cada etapa foi uma realização. Cada página que saía da editora era uma prece de Aleluia ao menino que fui e que, um dia, sonhou com aquilo.
Aquele momento era, eu achava, a glória de toda uma vida.
Eu era jovem, claro.
O que explica muita coisa.
Eu tinha 24 anos e minhas glórias então podiam ser coisas assim, como lançar livros.
Mas nem isso me deixaram ter. Eu que já tinha tão pouco.
Aconteceu que eu fui instruído, então, pelo meu editor (meu editor - que importante eu achava estar sendo!) a procurar a Secretaria de Educação do meu município para fazer o lançamento durante a tradicional Feira do Livro.
Para quem não sabe, moro em Tapera, interior do Rio Grande do Sul. Um lugarejo com cerca de 10 mil habitantes. E houve aqui, uma vez, uma escritora - a única de seu tipo. Pois bem, nos tempos idos, ela deu a Tapera a alcunha de “Cidade Cultura” e, desde então, esta feira é promovida como fardo, uma semana para lembrar do título, outras 51 para esquecer.
É. Estou sendo amargo, eu sei. Você consegue sentir?! É porque muito do que houve ali, apesar de fingir que sim, eu ainda não engoli. Eu ainda não relevei. Como a conversa que tive com a Secretária da época.
— Então, eu estou aqui porque gostaria de saber se haveria espaço para eu lançar meu livro durante da feira deste ano.
— Um livro?! Você?!
— É… um livro… Eu…
— Mas é livro?! Livro mesmo? Não é desses de computador?
— Não… É livro, livro mesmo… Livro impresso.
— Aham…. sei…. livro…
— É.
— E VOCÊ vai lançar?
— Isso.
— E, assim, Vini, sem querer ser indiscreta, mas você tem dinheiro para bancar a publicação de um livro?! Olha que isso é caro!
— Sim… Mas eu não vou ter que pagar… Na verdade, eu vou receber para publicar.
— Como assim “receber”?
— É… Eu fui procurado pela editora. Eles leram meus textos na internet, gostaram muito e me pediram uma história infantil. Eu enviei e foi aceita para publicação. Todas as despesas ficam por conta deles e eu ainda recebo um adiantamento pelas vendas.
— Hum… Sei… Adiantamento… Isso tá com cara de ser golpe, querido. Tem certeza?!
Eu tinha. Era livro, livro mesmo. E meu. Por que parecia tão absurdo? Por que eu estava sendo tratado com a condescendência com que se trata uma criança brincando de ser alguém?!
Hoje eu sei.
Primeira lição: você nunca será grande no lugar em que cresceu.
Aquela Secretária - digo isso não como desculpa, não como acusação, não como apontar de dedos - mas para justificar meu ponto. Aquela secretária era minha tia e madrinha. Quando olhava para mim, ali, sentado à sua frente, portanto, ela não via um escritor, mesmo incipiente.
Ela via o bebê que carregou no colo. Ela via o menino tão inseguro de ir na casa dela buscar o ninho de Páscoa, que precisou levar o gato junto. Ela via o Vinícius que mal abria a boca e se escondia quando vinha visita.
E eu era outro então.
A faculdade, a experiência em sala de aula, um mestrado em Letras já haviam me transformado em alguém que tinha firmeza na voz, que sabia do que falava, especialmente quando o assunto era Literatura. Eu era um escritor sim. Fora procurado por uma editora. Receberia pelo meu texto, pelas minhas palavras, porque elas eram boas o suficiente para isso.
Mas a mulher à minha frente não era capaz de percebê-lo.
Ao fim da conversa, eu ganhei direito a 15 minutos de fala. Antes de outro autor taperense que lançaria seu livro também. Um gaúcho, poeta tradicionalista, que pagava, tradicionalmente, para imprimir seus livros.
Não consegui nem um minuto a mais - embora o editor tenha dito que não valeria a pena mover toda uma estrutura e vir fazer o lançamento aqui por 15 minutos. Apresentado este argumento, consegui também uma mesa, que ficaria ao fundo do salão. Uma mesa na qual poderia dar autógrafos - se o livro existisse mesmo. Ao lado do tradicionalista, claro, enquanto o palestrante da noite falaria lá na frente.
Não bastasse, a conversa com a Secretária ainda se repetiu umas quatro ou cinco vezes — sempre que nos encontrávamos. No fim, ela parecia já bastante preocupada com a minha saúde mental. Deixando de me tratar como uma criança para me tratar mais como um esquizofrênico em surto. “Lançar livro é… sei…”
Quando o cartaz de divulgação foi publicado, todos os autores tinham seu nome em letras maiúsculas, em negrito. Menos eu. Era um detalhe. Eu sei. Mas é o olhar para os detalhes que faz os escritores.
Eu me preparei para aquela noite. Como eu me preparei… Condensei em 15 minutos a experiência de lançar um livro, minha expectativa, a importância da palavra, a formação de novos leitores, o sonho e a crença… Tudo que eu achava fundamental.
Quando terminei, fui aplaudido e tive dois segundos de glória.
Até o outro autor ser chamado. O gaúcho. E o silêncio se fazer então.
Onde ele estava?!
Burburinhos aqui e ali.
Uma nova chamada no microfone.
Uma terceira vez anunciando seu nome.
E nada.
Então, no melhor estilo de Cidadão Ilustre (se ainda não viram, vejam este filme, por favor, ele traduz minha cidade melhor que qualquer dado do IBGE), ele saiu de dentro do banheiro, enxugando as mãos nas bombachas e foi para o palco. E não, não existe uma forma delicada de dizer isso, então, me perdoem: mas ele estava literalmente cagando durante o seu lançamento.
Ele pediu desculpas - “Foi uma dor de barriga daquelas - é os nervo, vocês sabem!”.
E então declamou um poema ruim. Com três ou quatro erros gramaticais além dos permitidos pelo linguajar campeiro. E veio se sentar na mesa ao meu lado, ainda com a bombacha respingada pelas mãos molhadas.
Eu não quero soar pedante. Juro.
Não quero me dizer nem me sentir superior.
Afinal, ele representa outro tipo de cultura e de tradição.
Com sua história de vida, é louvável seu esforço para publicar e divulgar suas obras.
Mas quando se fala em literatura, existe o que é literário e o que não é.
Existe a materialidade do texto. Existe o estilo. E é isso que eu estudo. É nisso que eu me especializei. É isso que eu estou apto a julgar. E havia um abismo entre nós dois, jogados juntos ali, ao fundo, enquanto um terceiro escritor tocava violão lá frente - porque os autores precisam ser multimidiáticos aqui, caso contrário não têm espaço. Palestras são chatas - é esse o consenso.
Então eu me dei conta da segunda lição: não espere reconhecimento de quem nem entende o que você faz.
“Por que os homens amam mulheres poderosas”, nunca esqueci. Era esse o livro de cabeceira de uma das organizadoras da Feira naquele ano. Lembro disso porque ela compartilhava incansavelmente frases da obra no seu Facebook.
Naquela noite, eu queria desesperadamente ser reconhecido. Eu queria ser valorizado, abalizado como escritor por pessoas que tinham obras assim como livro de cabeceira e que, talvez, nem conseguissem entender o meu livro - ou do gaúcho ao meu lado.
E isso não era necessariamente um problema delas. Era meu. Eu estava distorcendo as minhas expectativas. Se o Cristiano Ronaldo aparecesse hoje aqui, por exemplo, e precisasse desesperadamente que eu o reconhecesse como um grande jogador de futebol, sairia frustrado como eu naquela noite. Eu não entendo NADA de esportes. Só reconheço o nome dele porque tenho alunos que são fãs. Mas se eu precisasse identificá-lo na rua, não conseguiria nem se minha vida dependesse disso. Que dirá compreender porque ele é bom.
Então, como esperar impressionar quem não consegue sequer nos entender?
Quem não tem critérios para isso?!
Para salvar a noite, preciso dizer que a fila que se formou diante da minha mesa foi imensa. E que, de fato, a conversa parecia mais animada lá ao fundo do que o violão sendo tocado no palco.
Entre as pessoas que vieram me cumprimentar, uma delas me trouxe a terceira lição da noite, a mais fundamental: importe-se com quem importa!
Ela havia sido minha professora de Língua Portuguesa no Ensino Médio. Daquelas cheias de exigências e competências. Uma das primeiras a elogiar meus textos. Ela, que eu admirava demais, estava ali, comprando meu livro, pedindo autógrafo, dizendo que sempre soube que eu estaria nesse lugar, que me aplaudiu em pé e que eu é que deveria estar lá na frente, não o moço do violão, porque eu sim tinha muito a dizer.
E não foi, vejam bem, não foi uma massagem de ego.
Ela jamais faria um papelão desses! Por isso, cada palavra teve tanta importância. Porque eu conhecia a seriedade dela, o nível de exigência e de sinceridade. Ela era do tipo que não pensaria duas vezes antes de fazer alguém sair chorando da sala de aula. Professora old school. Então, quando ela falava aquilo tudo, eu sabia que era de verdade. E mais: eu entendia que ela sim tinha critérios para me avaliar.
Foi esse o fim daquela noite. Entre altos e baixos, o reconhecimento viera afinal.
Não da massa, mas de quem valia a pena considerar.
Naquele lançamento, eu entendi que não adianta procurar nosso valor nos olhos errados. Não adianta esperar que quem só conhece o mundo do chão entenda a complexidade dos nossos voos. Há de se valorizar os aplausos certos, as vozes que realmente sabem ouvir o que dizemos, ainda que ecoemos sozinhos no fundo da sala.
Naquela noite, eu entendi que só haveria frustração enquanto eu esperasse ser considerado escritor em Tapera. Que meu lugar era fora dessa cidade, talvez dentro das telas. Como agora, nesta newsletter. Entendi que eu não preciso falar com todo mundo, mas com as pessoas certas. Aquelas que saberão entender a minha dor e compartilhar da minha alegria. Aquelas que eu consigo tocar e que conseguem me tocar de volta.
Naquela noite eu entendi, sobretudo, que voar é para os que ousam cair.
Porque é do chão que o impulso é mais forte.
🎃 Melhor momento do ano chegando e eu posso provar.
🩰 Adoro ser supreendido assim.
🌿 As partes que faltam são nossa melhor possibilidade.
🧚♂️ O poder de expressão do corpo é demais.
🌊 Esse papo aqui serviu de inspiração até para a arte de hoje no Insta.
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Bombou no Insta esta semana:
Esse poema também me lembrou o quanto eu gostava de publicar minha coisinhas no correio do povo 😊
mesmo sem um grande lançamento, foram lições importantíssimas!