"Era normal sentir vergonha, como se fosse uma consequência inscrita na profissão dos meus pais, nas dificuldades financeiras que eles tinham, em seu passado como operários, em nossa forma de viver. Na cena daquele domingo de junho. A vergonha se tornou, para mim, um modo de vida. No fim das contas, já nem percebia sua presença, ela estava em meu próprio corpo."
{Annie Ernaux, em “A vergonha”}
Eu sinto que a vergonha é meu habitat natural.
Ela já estava lá antes mesmo de eu nascer, filho bastardo de um doutor casado e sua empregada.
O que crescia na sua barriga, mãe, não era eu.
Era a vergonha que já me envolvia inteiro.
Quando fui adotado, foi ela quem me nutriu também, pela voz da minha segunda mãe: “O que os outros vão pensar? O que os vizinhos vão dizer?! O que os outros vão pensar? O que os vizinhos vão dizer?! O que os outros vão pensar? O que os vizinhos vão dizer?!”
A qualquer deslize, a ameaça era sempre a mesma: ela ia contar para todo mundo quem eu era!
Mas quem eu era, afinal?!
Acho que nunca cheguei a descobrir. Acho que cresci tão coberto por esse sentimento pegajoso que a vergonha é, que nunca cheguei a me conhecer direito. Sempre podado, sempre diminuído, sempre contido.
“Na vergonha há o seguinte: a impressão de que agora tudo pode acontecer com você, de que nunca haverá uma trégua, que mais vergonha vai se somar à vergonha”.
{Annie Ernaux, em “A vergonha”}
Em todo grande momento da minha vida ela estava lá, dominando tudo, deixando seu rastro de lesma. A vergonha do primeiro dia de aula. A vergonha do dia das mães, quando fiquei sozinho no palco. A vergonha de lançar meu primeiro livro.
A vergonha, sempre ela, como um guia, uma bússola, uma trilha.
Eu cheguei a ter vergonha da própria vergonha.
Na adolescência, quando alguém me dizia que eu estava ficando vermelho, a vontade sempre era a de morrer ali. Não! Deus me livre! Ali não! Vergonha de morrer assim, em público e incomodar os outros ainda…
“No fundo, a timidez é uma forma extrema de vaidade, pois é a certeza de que, onde o tímido estiver, ele é o centro das atenções, o que torna quase inevitável que errará a cadeira e sentará no chão, ou no colo da anfitriã. Convença-se: o mundo não está só esperando para ver qual é a próxima que você vai aprontar”.
{Luis Fernando Verissimo, em “Carta aos tímidos”}
Faz pouco tempo que curei isso em mim, que aprendi como diminuir a vergonha de existir que sempre senti. E usei para isso o mesmo raciocínio do Padre Antônio Vieira para acabar com um amor que não se quer mais: inserir na equação um sentimento maior.
“Comumente se diz que o maior contrário da luz são as trevas, e não é assim. O maior contrário de uma luz é outra luz maior. As estrelas no meio das trevas luzem e resplandecem mais, mas em aparecendo o sol, que é luz maior, desaparecem as estrelas”.
{Pe. Antônio Vieira, em “Sermão do Mandato”}
Há pouco tempo descobri que minha vergonha, apesar de imensa, é covarde. Que basta eu mostrar a ela um sentimento mais intenso para que ela murche e suma de vez.
Esse é meu segredo para dar aulas, gravar vídeos, escrever, fazer palestras ou qualquer outra coisa que envolva usar meu corpo, minha voz ou meu modo de experimentar a vida sem vergonha.
Eu só preciso me lembrar de que não estou ali por mim. Quase como um religioso, eu preciso dar lugar a uma inspiração maior. Se estou dando aula, eu preciso usar tudo de mim para que meu aluno aprenda. É essa a minha missão. Se eu precisar cantar para isso, imitar personagens, fazer vozes, o que for. Tudo bem. Estou ali por eles, não por mim.
Na hora de gravar um vídeo, preciso me lembrar de que ninguém vai fazer isso no meu lugar. Ninguém vai levar adiante o meu sonho de ser reconhecido pelas minhas palavras. Só eu. Então, bora lá.
Meu senso de dever consegue vencer a minha timidez. Todas as vezes. Esse é meu segredo. Fazer o que precisa ser feito, com intensidade, vontade, tesão mesmo, faz com que não sobre espaço para pensar no que os outros estão pensando. Danem-se os outros! Eu preciso fazer o que precisa ser feito. E fazer bem. Só isso me importa.
Se você também é assim, se também sente quão pegajosa a vergonha é, experimente colocar na frente dela os seus porquês. Experimente mostrar quão grande você pode ser. Tenho certeza de que não sobrará nem rastro dela na sua história.
📦 Cada pequeno passo conta, diz essa mensagem aqui. Amei a forma como ela é construída. Metalinguagem pura.
Caiu uma ficha grande aqui ao ler teu texto. Eu vivo com essa mesma vergonha (e culpa e vergonha e medo e o escambau) bem grande em mim, a ponto de ter dificuldade de dançar em público, por exemplo. Porém, quando leciono e facilito experiências grupos, eu vou e faço o que tiver que ir e fazer, inclusive dançar na frente de todo mundo. Por alguns anos, fiquei me perguntando como era possível que eu conseguisse agir de duas formas tão distintas sendo a mesma pessoa e usei esse conhecimento de mim para me sustentar nos momentos mais tensos. Baseado no Dragon Dreaming, eu chamava isso de "ser exuberante". O que eu ainda não havia sacado, e teu texto me ajudou a enxergar, é que sou uma pessoa super confiante quando estou servindo ou cuidando dos outros. Consigo ser deliciosamente exuberante ao ensinar, escutar, apoiar, porque não é sobre mim. Ainda quero transferir um pouco dessa exuberância para o cuidado de mim mesmo, mas por enquanto já estou bem feliz de ter feito essa conexão, graças ao teu texto. Muito obrigado! 🧡
Você é maravilhoso querido, obrigada pelas palavras, e pelo esforço! Eu vejo você S2