"A estrada em si não faz nenhum sentido"
"Caminho: tira de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada diferencia-se do caminho não só porque percorremos de carro; mas porque é uma simples linha ligando um ponto a outro. A estrada em si não faz nenhum sentido; só têm sentido os dois pontos ligados por ela. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho tem um sentido próprio e nos convida a parar. A estrada é uma triunfante desvalorização do espaço.
Antes mesmo de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem não tem mais vontade de caminhar e de ter prazer nisso. Sua vida também, ele não a vê mais como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha que leva de um ponto a outro [...]. O tempo de viver está reduzido a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar numa velocidade cada dia maior."
{Milan Kundera, em 'A imortalidade'}
Os livros de Milan Kundera não são literatura. São experiências de vida. De verdade, cada um deles me fez aprender o equivalente a anos de vivências pessoais.
Não é à toa que, depois da crise que enfrentei durante a semana passada, eu tenha recorrido a um deles para me apaziguar. Que linda essa distinção entre caminho e estrada, não?!
Pois é! Eu andei esquecido disso. Há poucos dias, tudo que eu queria era uma highway, pista tripla, sem limite de velocidade. Eu só queria chegar logo!
Chegar onde?! Bom... Chegar Lá! Mesmo sem saber direito o que esse “lá” poderia significar.
É que às vezes a gente desanima mesmo. A gente se esforça muito e é recompensado pouco. A gente só queria um atalho, uma estrada rápida... E, assim, conseguimos esquecer que o que importa é o caminho. É a conquista cotidiana, é a luta.
Ou você acha mesmo que algum herói conseguiria enfrentar a batalha final sem os aprendizados que teve durante a trajetória? As histórias nos ensinam isso. É nas aventuras do caminho que os protagonistas descobrem quem são, encontram as ferramentas de que precisam, inspiram-se para derrotar o mal.
Mas o que a gente quer na vida? A vitória, só que logo. Sem esforço, sem caminho.
Não dá.
Isso me faz lembrar de um game que eu hackeei na adolescência. De Kundera a games, lidem com isso. De toda forma, eu consegui um código que liberava moedas infinitas. Então, podia comprar tudo que eu quisesse. Foi uma farra no primeiro dia. Nada mais de cumprir tarefas, nada mais de esperar pelas recompensas! Era só escolher e levar!
Não demorou para que meu território ficasse lotado de bugigangas que eu não tinha onde colocar. Não demorou para que eu ficasse de saco cheio por não ter o que fazer no jogo. Resultado: desinstalei, mais frustrado do que estava quando precisava fazer por merecer.
É isso! Sem o caminho, a chegada não tem a mesma graça.
Por isso, pergunto: por onde você tem passado? Caminhos ou estradas?
Me desculpe escrever tanto por hoje, mas acho que este e-mail acabou sendo mais para mim do que para você. Ele serviu para reforçar aqui dentro a lição de Kundera: aproveite o caminho. É no caminho que a gente tropeça, sim, mas é por ter tropeçado que respiramos um pouco, olhamos em volta e descobrimos como o céu está bonito hoje.
Por isso, caminhemos.
📗 Boa parte desse sentimento de frustração meu pode ter a ver com isto daqui! Será que arte nos estragou (enquanto nos salvava) a vida?
🎼 Como essa música me ajudou a sair da bad que enfrentei, pensei em mandá-la para você também. Vai que…
🪟 E , por fim, como não se maravilhar com a possibilidade de olhar o caminho pela janela quando as janelas são como estas aqui? Ver que alguém é capaz de tamanha delicadeza sempre salva meu dia.