“Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…[…]
De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dor de ser quase, dor sem fim… –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…[….]
Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…”{Mário de Sá-Cadeniro, em ‘Quase’}
Ser escritor é se tornar íntimo dos quases da vida.
Isso porque estamos sempre imaginando possibilidades.
Cada cena, ao ser pensada, exige uma miríade de escolhas, de decisões, de caminhos a serem seguidos. Imaginar as consequências de cada um deles faz parte do ofício.
O problema é que essa se torna uma habilidade impossível de se desligar.
Então, quando a minha mãe disse assim: “Era pra você ter sido adotado por um médico, sabia?! O Dr. M…… Isso só não aconteceu porque você nasceu bem nos dias em que ele e a família viajaram para Europa, para um congresso”.
Agora imaginem o que esse quase inaugural causou em mim.
Não pela possibilidade de ser filho de um Doutor, mas porque ali eu percebi a fragilidade da minha própria história.
Bastava uma linha diferente. Uma escolha de palavras, um advérbio a mais ou a menos para tudo virar só possibilidade. Acho que compartilho isso com quem também foi adotado(a), essa história frágil, essa linha que não nos pertence, sabe?!
Porque, sem querer, somos produtos de decisões alheias. Basta um quase para nos revelar toda fragilidade da trajetória humana. Os outros sentem isso também, claro. Mas ao menos seus começos são conhecidos, suas histórias lhes pertencem. A nossa é um quebra-cabeça de sem peças. Sem mesmo. Faltam pedaços. A custo montamos uma paisagem aqui, uma casa ali, um texto lá. Mas nada se encaixa muito. Falta a imagem toda para comparar. Fica tudo sempre nesse quase.
E isso nos persegue, contaminando o resto.
Nesse fim de semana, eu encontrei as minhas agendas do Ensino Médio. Entre poemas, declarações, colagens e reportagens, eu posso traçar um mapa de quem eu deveria ter sido, de quem poderia ter me tornado.
Há tantos sonhos delineados ali, tanto ímpeto, tanto desejo…
Hoje, quase 20 anos depois, eu me pergunto o que faltou. O que precisava para que aquilo tudo se concretizasse. Que certezas ficaram incompletas naquelas páginas? Que passo de dança faltou chegar ao palco, ficou só nos ensaios?!
Um pouco mais de coragem, e eu seria um grande escritor.
Um pouco mais de entrega, e eu estaria milionário.
Um pouco mais de ousadia, quem sabe, e eu estaria feliz.
Ou quase.
Porque parece que fui atravessado pela vida. Meus planos foram feitos de nada quando precisei trabalhar em um curtume o dia inteiro, estudar à noite e tentar viver nos finais de semana. Como tantos aqui, aliás. O cansaço, a depressão, a azia, a hipertensão dos cafés pretos vieram e mancharam aquelas páginas que se esconderam em um armário qualquer, acumulando umidade só, fermentando no escuro e ganhando um contorno azedo.
Agora, ao abrir aquelas agendas, senti o cheiro da umidade e o peso de tanto futuro não vivido. Pois é. Os sonhos envelhecem mal. Eles são contaminados pelas marcas invisíveis das escolhas que não fizemos, dos riscos que não corremos, dos caminhos que se fecharam antes mesmo de serem trilhados.
É curioso como o tempo nos ensina a ver os quases com outro olhar.
Na juventude, cada "quase" é uma possibilidade, uma semente de expectativa e glória. Hoje, com mais estrada percorrida, cada um deles se tornou uma frustração, um arrependimento, um desperdício.
Quando olho ao redor, percebo que muito do que sou é resultado de decisões que não partiram de mim. As circunstâncias, os imprevistos, as obrigações, tudo isso colaborou para desenhar uma versão minha que, lá no fundo, não é a que eu sonhava nas madrugadas insones da adolescência.
E é exatamente aí que mora o perigo. O perigo de olhar para a vida como uma série de eventos sobre os quais não temos controle, de nos vermos como meros personagens de alguém, como se estivéssemos lendo a nossa própria história, sem ter a chance de intervir. Isso seria fácil de aceitar, mas não é verdade. Sei que, em muitos momentos, fui eu que escolhi parar, hesitar, me acomodar.
Porque a verdade é que o quase nos paralisa tanto quanto nos impulsiona. Ficamos em cima do muro entre o que foi e o que poderia ter sido, sem entender que é justamente esse lugar que nos impede de voar.
E eu, que sempre me perguntei o que faltou, talvez só precisasse aceitar que o quase faz parte do que sou. Que ele também é uma forma de ser. Não menos importante, não menos digna, mas única. Uma que me trouxe até aqui. Porque, no fim das contas, talvez não seja sobre o destino que não alcançamos, mas sobre o voo que tentamos dar, mesmo que sem o golpe final da asa. Mesmo sem chegar, no final, no puro azul.
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