“Não é como se ele gostasse de estar sozinho, é mais como se ele simplesmente não lembrasse como é estar acompanhado. Sua vida não foi triste, sofrida, ou qualquer coisa do gênero. Ele simplesmente se perdeu, e suas capacidades de se encontrar acabaram o levando a isso. Uma criatura que não sonha, que só espera para voltar a seu clausuro voluntário".
{Atlas — O Observador, em ‘Morfina’}
A chuva que vem e que lava a luz dos postes já não faz o mesmo conosco.
Estamos cobertos pela poeira dos dias, estamos opacos pelos ciscos do que já passou, estamos cegos de tanto pó solto colado por dentro dos olhos, fragmentos de nossas demolições.
Estamos, pois, sujos e sós.
E não importa quantos banhos tomemos.
Não importa quanta chuva venha.
Continuamos assim: baços.
Quem escreveu o trecho que recortei para a news de hoje não tem nome, nem rosto, nem idade. Mas eu sei bem quem ele é. Desde cedo acompanho seus passos. Ensinei a ele um pouco sobre escrever e muito sobre sobreviver. Ele foi meu aluno, do sexto ano ao Ensino Médio. E ler seu livro, agora, foi um choque para mim.
Choque, batida, reconhecimento, encontro.
Eu sei do que ele fala em cada página. Eu já estive em cada lugar que ele menciona no livro. E eu não estou falando do curtume velho, das ruas em que cachorros dormem largados, das nuvens de fumaça que vêm dos cigarros das prostitutas a quem um dia amamos. Não.
Eu estou falando da intensidade e da solidão que há ali.
Ler este livro me fez pensar em que momento a gente deixa de viver intensamente. Em que momento a gente se acalma. Em que momento a gente se retira e simplesmente desiste?! Porque há um momento assim, eu sei. Um momento em que a gente se rende e para de limpar a poeira dos dias. Um momento em que a gente se resigna e deixa as coisas acontecerem, sem sentir.
Há dias em que desmontamos. Em que demolimos o peito e vemos tudo ruir. Momentos de se desesperar e gritar. Mas nós não gritamos mais. Nós já não caímos. Nós simplesmente continuamos.
Porque, se por dentro tudo é ruínas, por fora a vida segue. A vida exige nosso compromisso, nossa ordem, nossa insensibilidade.
E é isso que vamos fazendo: organizando o que dá. Varremos os nossos cacos para baixo de tapetes quilométricos. Colocamos máscaras no rosto, escoras no peito e vamos.
Mas a cada vez que fazemos isso, a poeira permanece no ar, se agarrando aos vidros de dentro. A cada vez, vamos nos tornando mais insensíveis, mais opacos. Vamos ganhando o que Cecília Meireles chamou de “um coração que nem se mostra”.
Já não acreditamos mais em sentimentos. Já não nos entregamos, nem ao outro, nem à vida. Já não sonhamos, senão com dois pés no chão. Os outros sim, nós não. Não podemos. Não nos permitimos.
Vamos ficando, então, assim: sujos, mas bem. Opacos, mas encaminhados. Baços, mas confiáveis. Executamos tarefas, cumprimos compromissos, damos conta de responsabilidades como se nada houve, mecanicamente. Vivemos uma vida artificial. Mas por onde andará a nossa alma?
Mentimos que está tudo bem, que gostamos de ficar sozinhos, que não nos importamos mais. Seguimos, é bem verdade, mas jamais nos perguntem para onde.
E é nossa capacidade de nos encontrarmos, de mantermos um certo centro, apesar de tudo, a nossa perdição. Porque colocamos tantas escoras, tantos andaimes, tantos pilares para evitar novas demolições, que acabamos numa prisão. Estável, minimamente estável, mas uma prisão.
Atlas: O Observador diz o nome que ele escolheu para assinar a obra. Atlas: um dos titãs, aquele condenado a carregar eternamente o mundo nas costas. Aquele ser solitário, sempre do lado de fora, a quem corresponde o peso de tudo. O Observador: aquele que vê, mas não vive, que não interfere, não age, não sonha. Só vê.
E eu, que sei seu nome, seu rosto, sua idade certa, quase posso tocá-lo.
Ele se move pelas ruas, uma sombra entre as sombras, um eco de passos solitários em uma cidade estranha. A chuva persiste, mas agora ele a sente de maneira diferente. Ela é só uma lembrança dos tempos em que a pele ainda sabia o que era tocar outra pele. A água escorre pelo seu rosto, como se quisesse despertar algo adormecido por dentro, lavar todo o pó. Mas ele resiste. Afinal, o que é a chuva senão uma melodia triste que nos lembra da nossa própria fragilidade?
Os postes iluminam o caminho, mas suas luzes são pálidas, quase desbotadas. Ele se pergunta se algum dia foram mais brilhantes, se já guiaram alguém para casa ou se apenas existem para marcar o tempo. O Observador não tem respostas, apenas reflexões. Ele se tornou um arquiteto de perguntas, um construtor de enigmas. E é essa a sua perdição.
Mesmo assim, ele segue. Não porque quer, mas porque não sabe como parar. Não sabe como cair. Não sabe se alguém o ajudaria a se levantar. É provável que não. Os outros é que sempre dependeram dele. Por isso, tantas escoras.
A vida continua, inabalável, e ele é apenas um detalhe na vastidão do mundo. Ele se perdeu, mas talvez haja beleza nisso. Talvez a solidão seja uma forma de liberdade, um espaço onde a alma pode dançar sem plateia. E, quem sabe, em algum momento, ele se lembre de como é estar acompanhado. Não por obrigação, mas por escolha. Não por escoras, mas por desejo. Talvez, algum dia, ele sonhe de novo. Com um olhar limpo como antes.
Atlas, O Observador, esse titã cansado, ainda carrega o peso do mundo.
Mas agora, ele também carrega a esperança de que, em meio à poeira dos dias, possa encontrar algo mais. Possa ser algo mais. Algo que o faça se lembrar de que, mesmo na solidão, há beleza. E que, talvez, somente talvez, a vida seja mais do que observar.
Talvez, a vida seja sobre viver.
🚨 Desconfio que isso tem a ver com a nossa desconexão, não?!
🎯 Se a news de hoje fosse um quadro, seria esse.
🕰️ Ou esse?!
🕳️ Sonho, possibilidade, criação ou prisão?
🐰 O que eles olham? Quem está por baixo das máscaras?
✨ Indireta poética: por que não?!
E se você gosta do meu trabalho e quer apoiá-lo, você pode:
Comprar uma das minhas zines clicando aqui.
Indicar esta news a alguém que você queira bem.
Acompanhar meus textos pelo perfil do Instagram.
Enviar um pix de qualquer valor para vinicius.linne@gmail.com.
Bombou no Insta esta semana:
Este texto está especialmente poético e intenso, apesar de melancólico. Gostei demais
difícil (sobre)viver carregando o peso do mundo nas costas...