“Francês com a Sra. Maigre se resume a uma longa série de exercícios técnicos, quer se faça gramática ou leitura de textos. Com ela, parece que um texto foi escrito para que se possam identificar seus personagens, o narrador, os locais, as peripécias, o tempo do relato etc. Acho que nunca lhe veio à mente que um texto é antes de tudo escrito para ser lido e provocar emoções no leitor. Imaginem que ela nunca fez a pergunta: ‘Gostaram desse texto, desse livro?’. No entanto, é a única pergunta que poderia dar sentido ao estudo dos pontos de vista narrativos ou da construção do relato... Sem falar do fato de que a mente dos alunos da minha idade é, a meu ver, mais aberta à literatura que a dos mais velhos ou mais novos. Explico-me: na nossa idade, por pouco que nos falem de alguma coisa com paixão e puxando as cordas certas (a do amor, da revolta, do apetite pelo novo etc.), temos todas as chances de vibrar.”
{Muriel Barbery, em ‘A elegância do ouriço’}
Ela jamais falou de livros velhos.
Ela jamais falou de autores mortos.
E, ainda assim, ela foi minha professora de Literatura.
Uma das melhores que tive.
De que ela falava, então?!
De nós, ora. Daquilo que tínhamos por dentro.
A Literatura era só uma porta de entrada, uma chave de interpretação, um emocionário que aprendíamos para ter uma língua comum.
Na primeira aula, já ela perguntou assim:
“Quem de vocês já pensou em se matar?”
Não respondemos, atônitos. Um adulto podia falar isso? Podia nos perguntar e esperar uma resposta? Antes que nos recuperássemos, ela continuou:
“Quem de vocês já se sentiu tão perdido e desolado a ponto de pensar que a vida não vale a pena? Quem de vocês já olhou para a lua e se sentiu sozinho, mas sozinho de não aguentar? Quem aqui já teve o coração ferido, quebrado, pisado e humilhado?! Todos?! Como eu imaginei. Bem-vindos, então, ao Romantismo! Vocês já entenderam. Todo adolescente já entendeu. Já entendeu a intensidade, a explosão de sentimentos, o pessimismo, o amor. É isso que a gente vai ver aqui.”
Eu acho que foi ali que eu virei professor, contaminado pela intensidade dela, pela paixão com que ela lia cada poema, cada conto, cada trecho de livro. Dizem que a docência é um exercício de imortalidade. Acredito demais nisso. Acredito porque eu carrego seu legado. E já consegui transmiti-lo também a alguns escolhidos que se tornaram professores.
Em qual outra profissão eu poderia falar do amor e da morte, da angústia e da náusea, da rosa e do povo?! Em que outra profissão eu poderia fazer pensar e sentir?! De que outro modo eu poderia trabalhar todos os dias com a minha paixão: a alma humana?! Digo, a Literatura.
“Um professor é alguém que ama seu tema ou matéria, que se preocupa com ela e presta atenção a ela. Ao lado do “amor pelo assunto”, e talvez por causa disso, também ensina por amor ao aluno. Como um amador, o professor não é apenas versado sobre algo, também se preocupa e está ativamente envolvido nesse algo. Não só é conhecedor de matemática, mas apaixonado pelo assunto, inspirado por seu trabalho e pelo material. Esse é um entusiasmo que se mostra nas pequenas ações ou gestos precisos, expressões de seu conhecimento, mas também expressões de sua preocupação com o trabalho à mão e seu lugar nele. Esse entusiasmo, literalmente, tem a capacidade de dar uma voz ao objeto de estudo ou prática, seja ele matemática, linguagem, madeira ou estampas”.
{Jan Masschelein e Maarten Simons, em ‘Em defesa da escola’}
Dar voz à Literatura é minha missão.
Não aos autores mortos, nem aos livros velhos.
Não às questões do ENEM, ou aos repertórios para a redação.
Mas à Literatura, à conexão que temos com todos os que vieram antes.
Quando meus alunos riem com Gregório de Matos ou choram com Caio Fernando Abreu, eu sei que cheguei lá.
Ainda na escola, há muitos anos, li alguns artigos sobre a educação. Lembro de um em específico, porque ele me fez pensar nessa minha professora. Era uma pesquisa feita em uma escola pública. As autoras queriam saber o que tornava um professor o preferido dos alunos. A hipótese elencada por elas era de que seria o mais permissivo, aquele que deixava os estudantes tomarem conta da aula.
Não era.
Através das entrevistas e dos questionários aplicados, elas descobriram que os professores que mais conseguiam cativar os alunos e, portanto, estabelecer o ambiente propício para o aprendizado, não eram os mais permissivos, nem aqueles que melhor dominavam o conteúdo ou a turma. Eram os apaixonados.
Eram aqueles cujo olho brilhava quando começavam a falar sobre sua matéria.
O que realmente nos faz amar algo – uma disciplina, um livro, uma profissão – é esse brilho nos olhos, essa faísca que se acende quando descobrimos que há algo mais profundo, algo além da técnica ou das regras. Minha professora, aquela que nos apresentou o Romantismo de um jeito tão visceral, sabia disso.
E hoje eu sei também.
Ser professor é um ato de generosidade. É compartilhar não só o conteúdo, mas a própria essência daquilo que nos move, que nos toca, que nos emociona. Quando eu entro em sala de aula, não é o cronograma que me guia, nem as avaliações. O que me leva adiante é a chance de acender essa mesma faísca nos olhos dos meus alunos, de fazer com que a Literatura deixe de ser apenas uma disciplina e passe a ser uma parte viva daquilo que eles são.
Não sei se você sabe, mas o verbo “educar” vem do latim “educere”, que significa trazer à tona. Nosso trabalho, então, como professores é esse: trazer para fora aquela chama toda que os alunos já têm por dentro.
E é por isso que, para mim, a sala de aula nunca será apenas um lugar de instrução. É um espaço de transformação, onde vidas se entrelaçam com palavras e sentimentos, onde a Literatura não só conta histórias, mas cria novas.
Cada aula é uma oportunidade de moldar o mundo interior de alguém, de fazer com que os olhos brilhem e os corações batam mais forte. Se eu conseguir, ao menos uma vez, acender essa faísca em meus alunos, então sei que cumpri o meu papel.
Porque, no fim das contas, ser professor é isso: acreditar que o conhecimento mais importante não é aquele que entregamos, mas aquele que despertamos.
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professor é uma das profissões mais generosas que existe. pena que seja tão pouco valorizada...