“Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz, o que você faria?Ia manter sua agenda
De almoço, hora, apatia?
Ou esperar os seus amigos
Na sua sala vazia?[…]
Andava pelado na chuva?
Corria no meio da rua?
Entrava de roupa no mar?
Trepava sem camisinha?Meu amor
O que você faria?”{Ney Matogrosso, em ‘O último dia’}
Eu sinto saudades de quando a filosofia me assaltava de chofre: assim, em frases pintadas nos muros, ou em aberturas de novelas. Agora, ela tem espaço fechado e só atende com hora marcada. Especializamos demais a vida. Demarcamos tudo.
Um porre.
Lá atrás - o ano era 1996 -, bastava começar a novela para que eu terminasse de me perder. Se o mundo fosse acabar, o que eu faria?! No apogeu dos meus 9 anos, ainda lembro, minha maior preocupação era morrer sem nunca ter sido beijado direito - por uma menina, digo.
Eu ainda era obcecado por roxo, colecionava Power Rangers, chorava toda vez que ouvia Estoy Enamorado, mas já dava conta de pensar e de sentir o Apocalipse. Já adivinhava as dores de deixar tudo explodir sem nunca ter me sentido amado.
E eu me lembro, isso é o pior, de calcular até que idade eu teria às vésperas do ano 2000: treze. 13 anos. Esse era o meu prazo de validade. Toda vez que a calculadora me exibia aquele número - sim, porque eu conferia as contas de tempos em tempos -, o que eu sentia não era ansiedade, nem medo ou angústia.
Era… conformidade, sabe?! No fundo, no fundo, eu gostava daquele fim do mundo agendado, com data e hora marcadas, feito em ano redondo: tudo muito bem organizado, muito caprichoso.
Para mim, aquela não era uma hipótese, um “e se”, uma teoria da conspiração. Não! Era um evento previsto no calendário. 13 anos: fim do mundo. Hoje, tenho 36 e muita coisa acabou, mas o mundo não.
Pois é.
Nunca fui bom em matemática.
Na semana passada, ainda vivo, depois de ficar dias sem ver nenhuma réstia do azul do céu, comecei a me lembrar dessa música. E do livro “A estrada”, de Cormac Mc Carthy:
“O horizonte não era mais que uma linha indistinta, onde o céu e a terra se fundiam em uma névoa cinzenta de morte e silêncio. Não havia fim para a escuridão, e a fumaça pairava como um cobertor que nunca se dissipava. […] A luz que penetrava o céu parecia sem vida, e o sol, quando visível, era uma esfera pálida, como se não conseguisse mais aquecer a terra devastada.”
Quando olhar para fora da janela faz você se lembrar do cenário de um livro pós-apocalíptico, algo no mundo não vai bem, acredite.
Uma vez, li que os deuses hindus eram imaginados com a pele azul porque esta era a cor do céu. Os seus antigos criadores não conseguiam pensar em nada tão infinito e poderoso quanto aquela imensidão azul, por isso, nada mais justo que dar a seus deuses o mesmo tom.
Eclipsamos até os deuses.
O céu coberto de fumaça, as ruas cobertas de água, o mundo coberto de pragas. Não, não é à toda que comecei a pensar no fim do mundo de novo. E, desta vez, sem data marcada, mas com um tic-tac ensurdecedor, fazendo uma contagem regressiva.
Medo, ansiedade, estresse…
Tudo que eu não sentia aos 9, tentou vir agora. Veio um desespero, sabe?! Um desespero de ouvir sempre falar de um “novo normal”. Como se não tivéssemos aprendido nada. Como se fosse normal usar máscaras, erguer móveis, perder casas, incendiar florestas, encobrir céus.
Ainda há quem duvide do aquecimento global.
Ainda há quem desdiga a ciência.
Ainda há quem faça pouco caso de toda preocupação à beira do caos.
Mas o que importa é quantos seguidores temos e quem está saindo com quem.
“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, escreveu Mark Fisher. As festas, as marcas, as publis, as cerimônias, as horas ocupadas perseguindo rastros de fumaça, de deuses e de amor. Tudo encontra uma forma de continuar. Sempre igual. Sempre em um novo normal que não tem mais nada de natural. Socorro!
De repente, eu que já torci pelo meteoro, me peguei em desespero.
E foi daí que corri ao que sempre me salvou: a poesia.
Depois do fim
Brotou uma flor dentro de uma caveira,
Brotou um riso em meio a um De Profundis,
Mas o riso era infantil e irresistível,
As pétalas de flor irresistivelmente azuis...
Um cavalo pastava junto a uma coluna
Que agora apenas sustentava o céu.
A missa era campal: o vendaval dos cânticos
Curvava como um trigal a cabeça dos fiéis.
Já não se viam mais os pássaros mecânicos.
Tudo era findo sobre o velho mundo.
Diziam que uma guerra simplificara tudo.
Ficou, porém, a prece, um grito último da esperança...
Subia, às vezes, no ar, aquele riso inexplicável de criança
E sempre havia alguém reinventando o amor.
{Mario Quintana, em “Nariz de vidro”}
Meu Deus, como eu gosto desse poema!
Como eu consigo ver, tocar, sentir cada verso.
Eu vejo os campos refeitos. Vejo o cavalo pastando. Vejo a natureza retomando seu domínio sobre tudo. Vejo ruínas floridas, vejo asfaltos gramados. Vejo flores, flores brotando em caveiras.
Meu Deus, como eu amo o verbo que Quintana usa ali: “Dizem que uma guerra simplificara tudo".
Eu, que amo a simplicidade, que quero um céu-deus azul e fácil, que sou, a um só tempo, a caveira e a criança, ambas felizes, como eu amo esse poema. Porque ele me lembra da continuidade, dos fins que não vêm, do amor vencendo as trombetas todas.
E não, eu não sou nenhuma Pollyanna.
Sigo amargo, desesperançado e áspero.
O caos está aí, e eu não sei fechar os olhos.
Mas sei escolher o que olhar.
E escolho responder à pergunta da abertura da novela da melhor forma que posso: sabendo que, mesmo em meio à fumaça, à destruição e à incerteza, ainda existe a poesia.
Ainda existem flores, mesmo que brotando em caveiras.
Sei escolher que o "novo normal" vá para o inferno.
Se ele acabar, será um alívio.
Sei querer de volta meu velho normal: aquele em que eu era ainda uma criança que colecionava Power Rangers e só queria, no fundo, ser amado até o mundo acabar.
🍍 Um lado meu quer muito te recomendar essa música aqui.
📆 Aqui tem uma lista completa de fins do mundo aos quais sobrevivemos.
🎭 Se existe uma série melhor sobre o poder de recomeçar (por meio da arte!) eu desconheço.
E se você gosta do meu trabalho e quer apoiá-lo, você pode:
Comprar uma das minhas zines clicando aqui.
Indicar esta news a alguém que você queira bem.
Acompanhar meus textos pelo perfil do Instagram.
Enviar um pix de qualquer valor para vinicius.linne@gmail.com.
Bombou no Insta esta semana:
a humanidade vem trabalhando com afinco para que só reste mesmo um dia.