“Não parecia um homem que ocupa um espaço, mas antes um bloco de espaço impenetrável na forma de um homem. O mundo ricocheteava nele, se espatifava de encontro a ele, às vezes aderia a ele — mas nunca entrava".
{Paul Auster, em ‘A invenção da solidão’}
Os antigos budistas comparavam o ser humano a uma casa.
Uma casa de seis janelas.
Nessa visão, cada janela representava um sentido, uma forma pela qual temos acesso ao mundo exterior: audição, visão, tato, olfato, paladar e, claro, intuição - que eles consideravam um sentido tão válido quanto os demais.
Nossa essência, nosso “eu” verdadeiro, não seria a casa.
Ele estaria, na verdade, dentro dela, impossibilitado de sair, apenas lidando com o que entrava pelas janelas. Faz sentido para você?
Se pararmos para pensar no funcionamento do nosso organismo, o cérebro é responsável por interpretar a realidade, certo?! É ele quem pega todos os impulsos que recebemos por meio das diferentes terminações nervosas e faz tudo ganhar sentido. Ondas viram música, moléculas viram cheiros desejáveis ou detestáveis, sinais luminosos viram o rosto de quem a gente ama.
Tudo acontece no cérebro, mas o cérebro em si não tem permissão de sair. Ele está trancado na nossa caixa craniana, assistindo ao mundo pelas janelas.
Eram sábios esses antigos budistas, não?!
Mas não é deles que eu quero falar.
É de Descartes.
René-Descartes, filósofo, físico e matemático francês, certamente não foi o primeiro a estabelecer a dualidade mente-corpo. Muitos séculos antes dele, Platão e Aristóteles já davam um jeito de separar razão e emoção (aqui aliada aos sentidos e, portanto, ao corpo). Apesar disso, foi Descartes quem ficou conhecido como o pai dessa divisão, ao garantir que o corpo ocupa espaço, mas a mente não. Entre eles, todos concordavam: o corpo é um animal, a mente é que é divina.
Ok. Talvez não seja sobre Descartes esta news também.
É que ainda não encontrei o tom. Apesar disso, sei que poderia usar sua frase mais famosa — “Penso, logo existo” — para chegar à série Years and Years.
Já na primeira temporada, Bethany tenta convencer os pais a autorizarem seu upload para a nuvem. Ela não se sente bem como ser humano, como possuidora de um corpo. Então, quer convencê-los de que sua consciência pode ser logada em um sistema. Ela viverá eternamente, no melhor estilo de outra série, Black Mirror, enquanto seu corpo será deixado para trás, sacrificado pelo caminho.
Se o que garante a nossa existência é o pensamento — argumenta Bethany — ele seguirá em bits e bytes pela máquina. Qual o problema, então?! Quem ainda quer um corpo numa era de filtros perfeitos e realidades virtuais?!
O que fazer com um corpo quando a mente é tão vasta, tão plena de possibilidades, tão perfeita? O que fazer com um corpo que sua e engorda e cheira e produz todo tipo de barulhos e secreções?! O que fazer com um corpo que é todo prisão, julgamento e condenação?!
Na minha última aula, uma aluna minha pensava em tudo isso, enquanto numa dinâmica de teatro e expressão corporal precisava interagir com os colegas e usar o corpo para representar diferentes objetos.
Ela é uma excelente escritora. Ela tem uma capacidade inata para imaginar, criar e dar vida às palavras. Mas também tem em si uma timidez que é toda relacionada ao corpo, que está em cada poro, em cada pelo, em cada fio de cabelo que ela odeia em si mesma.
Ela é um ser dividido.
Ela levou a sério o binômio de Descartes. Ela faria, sem titubear, hoje mesmo, o procedimento da série Years and Years, se ele existisse. Ela é o ser que vê a casa dos budistas antigos não como lar, mas como prisão.
Ela sou eu.
Sou eu quando esqueço que há mais aqui, em mim, do que se pode ver. Sou eu quando me permito pensar “o que os outros vão dizer” sobre meu peso, minha aparência, minha pele, meus cabelos. Sou eu, quando desprezo tudo em mim que me permite sentir, sair de dentro da mente, ir para o toque, o gosto, o cheiro…
Em um mundo que muitas vezes nos reduz a aparências e expectativas, ela sou eu. Sou eu quando esqueço da minha vastidão interior. Quando esqueço que somos mais do que corpos em constante julgamento. Somos pensamentos, emoções e sensações. Somos a dança entre o palpável e o invisível, entre o que vemos e o que sentimos. Entre quem tocamos e quem deixamos nos tocar.
Se pudesse, diria a ela ali mesmo, no palco: Minha querida, abrace sua casa de seis janelas. Olhe pelas frestas dos sentidos. Sinta o mundo tocar sua pele, ouça as melodias que ecoam em sua mente, prove os sabores que fazem seu coração vibrar. E, quando a timidez ou o medo surgirem, lembre-se de que você é uma história em constante evolução, um poema que ainda está sendo escrito, um toque que ainda fará sua alma inteira vibrar.
Permita-se explorar o teatro da vida, mesmo com todas as inseguranças. Seja a personagem que transcende os limites — da mente e do corpo —, que busca a imortalidade, não nas entrelinhas de um código tão binário, mas por dentro da pele. Seja você mesma, com todas as suas contradições e maravilhas, seus miasmas e seus suores, seus barulhos e sinfonias, seu peso e seu cabelo. Porque você é a casa e o habitante, a janela e o olhar curioso, a alma e a lama.
Permita-se, então, por favor, ser!
🤔 E por falar em dicotomias, é possível separar o autor da obra?
🕶 Felicidade é questão de ser.
👻 Um lugar onde eu queria estar.
👄 Uma mulher que eu gostaria de conhecer.
📕 Um objeto que eu gostaria de ter.
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triste quando o externo ganha mais importância do que o que vai por dentro.