"Lama pelo chão"
“Para mim a chuva no telhado
É cantiga de ninar
Mas o pobre meu Irmão
Para ele a chuva fria
Vai entrando em seu barraco
E faz lama pelo chãoComo posso
Ter sono sossegado?”{‘Balada da Caridade’}
Hoje não tem poesia.
Eu, pelo menos, não consigo. Eu não consigo porque, apesar de estarmos seguros e bem, a enchente que devastou o Rio Grande do Sul, meu estado, escorreu pela tela do meu celular e inundou a minha vida toda aqui.
Hoje não tem poesia.
Porque a chuva que caía lá fora era a mesma que arrasava cidades inteiras. O sotaque que eu ouvia nos vídeos de resgate era o sotaque que eu cresci escutando. Aquela água barrenta, revirando casas, árvores, pensamentos, era tingida de rubro pela mesma terra vermelha com que eu brinquei desde sempre, desde que cantava aquela música com meu pai, sobre a chuva no telhado. E eu não posso lidar com isso.
Hoje não tem poesia.
Porque não era filme, produção hollywoodiana, notícia de guerra distante. Era o rio que separa minha cidade de outra vazando e invadindo as ruas. Eram famílias desesperadas, sem querer deixar tudo para trás. Era professor, colega meu, mandando foto no grupo da escola, mostrando sua casa só com o telhado para fora da água. Socorro!
Hoje não tem poesia.
Hoje não tem poesia porque, de repente, eu olhava para o que estava acontecendo em outros lugares e via minha filha ali, numa menina encolhida, sentadinha sobre um fogão com a água ameaçando levar seus chinelinhos. Eu via o meu cachorro em cada cusco regatado, molhado, tremendo de frio e de medo. Cada senhor, cada senhora, de repente, era um parente meu, mesmo sem ser. Aquele caixão, deslizando pelas águas, meu Deus, porque nem os cemitérios foram poupados, virou o caixão do meu pai. Aquele homem, carregando dois gatos nos braços, eu sei, era eu. Porque, olhando para os meus bichanos, bem e seguros, eu de repente percebi: são três! E eu tenho dois braços só. Como eu faria?! Eu sairia de casa, se fosse a minha casa?! Como eu protegeria quem eu mais amo? Eu conseguiria romper o telhado por dentro, caso precisasse me refugiar no forro e escapar por ele? O que priorizar na hora de carregar uma vida em duas ou três sacolas?
Hoje não tem poesia, me desculpem.
Não tem poesia porque casas foram arrastadas. E quando vou beber uma água na minha geladeira, eu a vejo submersa, afundada na lama, ou servindo de abrigo para os bichinhos, como deu na TV. Hoje não tem poesia, porque quando olho para a boneca da minha filha, enrolada no seu carrinho, usando uma roupinha que foi dela, eu lembro do áudio de um homem que enquanto resgatava três crianças de barco ouviu de uma delas: tio, pega pra gente aquela bonequinha? Ele pegou e não era boneca. Era o corpo de um bebê. De repente, o meu bebê. Meu Deus! Hoje eu não consigo…
Eu não consigo porque por um triz não somos nós, entende?! Por um acaso nascemos em uma cidade e não em outra. Por um detalhe não morremos hoje, num desmoronamento, num lodaçal, num rio de fúria e lama. Estamos vivos, mas não completamente. Eu não pelo menos. Não completamente porque uma parte minha se foi, estilhaçada nos gritos de quem não conseguiu tirar a filha de casa a tempo.
Hoje não tem poesia porque eu estou sentindo tudo, porque estou inundado por dentro, de dor e sofrimento. Minha casa está seca, eu estou seguro e bem, hoje teve sol. Mas não adianta. Eu não consigo parar de sentir a água na minha própria pele. E de repente, percebo: são lágrimas. Eu estou chorando desde que tudo começou, como há muito tempo não fazia.
Hoje está impossível.
Hoje não tem poesia.
Hoje, eu estou com a alma inundada.
💧 É só isso. Como escreveu Tolstói: “Todos os que vivem, não vivem por bastarem a si próprios, mas pelo amor que há no homem”.
Hoje, não peço nada para mim. Neste site, você encontra informações de como ajudar as causas que lhe são mais caras. Obrigado desde já. Vai passar. Somos fortes, aguerridos e bravos. ❤️💛💚